terça-feira, 29 de setembro de 2015

A gota

Era uma vez uma gota de chuva que não queria cair. Brava, ela observava as outras gotas caindo em direção à terra, mas ela não queria. Não entendia a necessidade da queda, sabia que cair doía.

A nuvem mãe veio em sua direção para saber o motivo da cara emburrada. Mesmo explicando seu medo, a mãe nuvem não amoleceu. De branca ficou cinza, pegou um raio e mandou na poltrona de névoa que a gota teimosa estava sentada.

Com o susto e sentindo-se só, a gota não teve outro caminho a não ser o da queda. A cada segundo ganhava mais velocidade. Enquanto passava pela densa tempestade, via outras gotas se despedindo dos familiares, felizes por saberem da importância do seu trabalho na terra. Os pais nuvens sabiam que logo estariam todos juntos novamente. O sábio fenômeno da evaporação era querido entre eles. Era ele quem trazia de volta as gotinhas para o céu.

Nenhuma das cenas bonitas fez a gota medrosa se animar, afinal ela estava caindo. Ao ver o chão cada vez mais perto se preparou para o impacto. Doeu.

Já no chão, começou a escorrer pela terra do campo onde havia caído. Percebeu muitas árvores doentes, uma se apoiando na outra. Algumas faziam da própria raiz, uma bengala para se manterem em pé, secas, sedentas por água. Foi aí que ela entendeu a necessidade da queda. Cair lhe deixava na mesma linha de quem sofria. Vendo de cima ela não enxergava lá embaixo.

Agora, dona de si, a gota escorria por todo campo. Aonde passava era bem-vinda. Flores e árvores se abriam para ela. Sementes brotavam em seu rastro. A poeira seca transformara-se em solo molhado, cheio de vida.

Para agradecer a vinda das gotas, ao fim da chuvarada, a terra produzia um perfume de chuva com grama molhada para que as gotas, ao voltar para o céu, mostrassem às nuvens a recompensa pelo bom trabalho.

A gota teimosa matou a sede de tanta mata, que evaporou mais cedo. Chegou ao céu com seu perfume de chuva. Sorriu para a mãe nuvem que grandiosa lhe aguardava. Entendeu porquê o céu era perfumado. A gota não tinha mais medo de cair.

Música e clipe que inspiraram este texto: https://www.youtube.com/watch?v=LVpuUKe9izI

Considerações matinais da rua:

1) Liberdade verdadeira é quando o telefone toca e você simplesmente não atende.
2) Bom mesmo é ser o dono da Coca-Cola. Independente de crise econômica, sempre haverá alguém tomando uma para refrescar depois de tanto andar entregando currículo.
3) Quem começa o dia com música é mais feliz.
4) Há não uma, mas duas certezas na vida. A primeira é morrer. A segunda é para aonde olha um grupo de homens ao ver passar uma mulher com calça de ginástica.

Maratona Cultural - Orquestra na Rua. Projeto do meu coração!

No meio dessa crise toda, de expressões cansadas e falta de esperança em dias melhores, o de hj foi como um calmante... Um respiro, uma amostra do que o ser humano pode ser e poderia ser mais vezes ao longo da vida. Um dia onde houve mais sorrisos que preocupações, mais pessoas sintonizadas no silêncio quando se ouve uma orquestra, mais conversas entre pessoas que não se conheciam, mas trocar uma ideia com quem estava ao lado era um jeito de dividir o momento. Mais mão no queixo e movimentos positivos e solitários com a cabeça dos senhores que, dessa forma, se expressavam em sinal de admiração. Mais palavras de força do que de desânimo: "Ei, você pode me explicar como funciona o projeto? Que coisa mais linda! Não parem!" Mais esperança que a falta dela. Um dia como hoje faz a gente voltar pra casa e pensar que a vida não é sempre boa, mas quando ela é, é demais! É uma recarga naquele pensamento que no fundo todos nutrimos do tal "mundo melhor". Afinal, quem sabe né? A @orquestranarua agradece àqueles que sempre nos ajudam, ao público presente e claro, aos nossos queridos músicos, dispostos e felizes por estarem ali. #aruaénoiz #orquestranarua

Crédito: Kennedy Lui

Sábia Terra

O homem tira, mas a natureza volta com sua imensa generosidade, mais uma vez: "... o que assombra os nutricionistas é sua composição como alimento. Pesquisadores concluíram que, comparada grama por grama com outros produtos, a moringa possui sete vezes mais vitamina C que a laranja, quatro vezes mais vitamina A que a cenoura, quatro vezes mais cálcio que o leite de vaca, três vezes mais ferro que o espinafre e três vezes mais potássio que a banana (...) Graças à moringa abundante e aos cereais e as leguminosas plantados nos terraços Konso, o fantasma da subnutrição afasta-se cada vez mais do sul da Etiópia. (...) ela oferece ainda mais um presente às comunidades rurais. Devido a uma composição particular dos óleos e das proteínas contidas nas sementes, quando trituradas e misturadas a uma água turva e não potável, uma reação extraordinária é produzida: a água fica limpa." Sábia Terra

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/viajologia/noticia/2015/06/moringa-arvore-magica-que-pode-acabar-com-fome-no-mundo.html

Rap é poesia!

"Então, fiquei sem saber o que fazer, tentando me lembrar de alguma poesia, alguma coisa, mas não tinha nada na cabeça. Falei para os moleques: “Vamos fazer uma cena de poesia”. Eles ficaram me olhando e falaram: “Ah, poesia é coisa de veado. Você tá tirando!”. Respondi que se ninguém gostasse eu iria sair fora e comecei a declamar: “O que é o que é, clara e salgada, cabe no olho, pesa uma tonelada, tem sabor de mar…”, e eles continuaram declamando. Eu interrompi e disse: “Ué, vocês não disseram que não gostavam de poesia?”. E eles responderam: “Mas isso aí é Racionais”. “E Racionais é o que?”, rebati. “Ah, Racionais é rap”, devolveram eles. E daí eu terminei: “E rap é o que?”. Eles ficaram em silêncio e eu continuei: “Rap não é ritmo, amor e poesia? Se eu colocar um ritmo em uma poesia não pode virar um rap? Oh, vou fazer outro rap pra vocês: [começa a cantar] ‘Vocês que atravancam meu caminho, ah, passarão, eu passarinho’”. Os caras ficaram olhando e falaram: “Pô, legal esse rap aí. Mas a gente não conhece”. E eu respondi: “Isso é Mário Quintana”. Caraio  http://brasileiros.com.br/2015/06/fundacao-e-tudo-menos-casa-afirma-rapper-renan-inquerito/

Cabeça grande, cabeça pequena.

Na farmácia com a mãe: 
- Boa noite, posso ajudar?
- Oi, pode sim. Tô procurando escova de dentes.
- Pois não, por aqui. Você tem preferência por alguma marca?
- Ah, gosto da Oral B ou Jonhson. Mas com cabeça 30, pequena.
- Deixa eu procurar.
Chega minha mãe, que até então estava em outro canto da farmácia.
- Que foi filha?
- Estamos procurando uma com cabeça 30.
- Mas por que? Você gosta de cabeça pequena? Eu prefiro cabeça grande.
- Ah... Você gosta de cabeça grande, mãe? (já rindo)
- Filha!
Eis que a vendedora responde:
- Os dentistas recomendam as de cabeça pequena porque chegam mais no fundo da boca, limpam melhor.
Neste momento, caímos na risada. A vendedora séria e profissional, pergunta:
- Aqui, achei uma cabeça 30. Mais alguma coisa?
- Só isso, obrigada! Viu mãe, cabeça pequena é melhor. hahahahhah
- Eu só uso a grande.
E vamos embora rindo!
Um salve à amizade entre pais e filhos, à idiotice da malícia de 15 anos e lógico, à "família tradicional brasileira"!

Palavra cantada

Ouvir rap num ônibus lotado às 7h da manhã faz as letras ganharem todo sentido. E por mais que essa não seja a sua rotina diária, vale a pena escutar. 

O rap desenha, faz praticamente um retrato para quem ainda não entendeu por que existem pessoas que são contra a redução da maioridade penal como solução da violência e todas as bandeiras de justiça, exclusão, oportunidades e causas varridas para debaixo do tapete. 

Ele faz a ponte pra quem não conhece o lado de lá e basta ser um pouco sensível e humano para que essas letras façam sentido pra vc tb. O rap são as matérias que não saem nos jornais.

Se ela falou, tá falado!

https://jornalismoliterarioblog.wordpress.com/2015/07/27/10-livros-que-todo-jornalista-deve-ler-por-eliane-brum/

Um texto que não permite extrair só um trecho.

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,por-cima--nao-acima,1748678#

Amai ao próximo como a ti mesmo

”Como repórter, uma das cenas que mais me dilacera e que se repete quase toda vez que piso pela primeira vez na casa de alguém que mora na periferia é quando me estendem sua carteira de trabalho para provar que não são bandidos. Homens e mulheres sofridos, assinalados pela vida dura, que sabem que já nasceram sob suspeição porque são pobres, e mais suspeitos tornam-se se ainda por cima forem também negros. E eu, branca e jornalista, sou decodificada como uma autoridade a quem também é preciso estender a carteira de trabalho. Recuso, digo que não precisa, repito que não devem. Insistem. Eu pego, morro um pouco. Neste gesto, toda a falência do Brasil é consumada.“Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar.”A principal linha de investigação do massacre de 13 de agosto aponta para a vingança, por parte de policiais militares, pela morte de um colega durante um assalto, ocorrido na semana anterior, na mesma região. Na maioria das demais chacinas, também há suspeita de envolvimento de policiais. O 13 de agosto prova, mais uma vez, que as periferias paulistas vivem sob estado de terror, provocado por uma guerra não declarada. Nela, tombam os mais pobres, a maioria deles negros." (BRUM, 2015) Em outro texto.

"A repressão a suburbanos e favelados não é novidade no município. Ano sim, ano também, ao primeiro sinal de verão, pipoca o medo de arrastão e as autoridades propõem “higienizar” os coletivos que vêm da Zona Norte. O governador apoiou a polícia: “Quantos arrastões foram praticados por alguns desses menores?”. O secretário de Segurança arrematou: “Você tem um ônibus de adolescentes que não pagaram a passagem, que não tem o que comer, com fome, e você acha que eles irão voltar como para casa?”. 

Já este trecho é desta coluna. Para mim interligados. E com a violência que os tratamos seremos tratados nesta incapacidade de tornar "eles" em "nós". "Poético, isso só dá certo no papel". Vai ver que é porquê a gente nunca tentou de verdade.



Antonio Maria

...Vem do sofá para a poltrona e senta sobre as pernas. Enrosca-se-lhe no pescoço. Ele a enlaça e lhe sente o cheiro e os seios.
- Deixe eu quietinha - pede-lhe ela. Depois: Só em você fico assim. Depois: Só tenho uma casa, que é esta. Depois: As outras pessoas nem são gente. Depois: Que é isto aqui no seu ombro? (Ele responde que deve ter sido mordida de mosquito.) Depois: Me bota na cama, assim como eu estou.
(...) Deita-a. Deita-se ao lado. Ela vira-lhe as costas e pede-lhe que a abrace. Ele pensa em como fica cômodo toda vez que a abraça assim. São poucas as pessoas a quem a gente se abraça e fica cômodo. As pessoas que se amam são confortáveis entre si. Ele ia explicando quanto o abraço dos dois dava certo, quando ela o interrompeu, dizendo que estava sentindo e pensando a mesma coisa.
(...) Na sala, a canção de Aznavour se repetindo. (...) Sorri. Ajeita mais o corpo no corpo dele. Segue um pouco a melodia de pleut, de boca fechada.
- Você tira a letra para mim?
- Tiro.
- Depois traduz?
- Traduzo.

Trechos de "Segredo do apartamento 912". Do livro As Crônicas de Antônio Maria. Maravilhoso. Quando crescer, quero escrever assim!

Bronca pessoal coletiva

Da janela do meu quarto no primeiro andar eu vejo a lixeira na calçada. Toda hora, de dia ou de madrugada, pessoas aparecem para remexer o lixo. Alguns abrem os sacos em busca do que é reciclável. Separam caixas de leite, de molho, latas de achocolatado, de cerveja, potes de plástico de maionese. Tudo o que na nossa preguiça - tal qual nossos protestos de varanda, a gente não faz, mas poderia fazer e facilitar a vida deles, ou melhor, a nossa, já que o lixo é um problema de todos. Enfim.

No outro dia é comum os moradores reclamarem da bagunça que esses "maloqueiros", diga-se catadores, fazem nos resíduos que a gente acha que organiza, mas na verdade só se livra.

Tem aqueles que abrem os sacos e comem o que acham com a mesma voracidade que nós quando chega o prato na mesa do restaurante, a comida da mãe ou um lanche do McDonald's. 

Fazem da mão uma concha, apanham os restos e mandam para dentro. Tenho a impressão que eles não respiram para não sentirem o gosto. Para beber, balançam garrafas na esperança dos pingos ou aquele gole demorado dos potes no fim do danone. Acho que todo mundo já virou um iogurte e ficou esperando aquele último fiozinho que demora a cair, sabe? Pois é.

Cinco horas da manhã do último sábado eu ainda estava acordada. Um som típico e já sabia que era alguém na lixeira. Um homem de bicicleta vasculhava o que podia aproveitar. Fiquei com vontade de chama-lo: "Ei, moço, tá com fome? Quer alguma coisa?" Mas o medo de descer sozinha caso ele dissesse sim me calou no anonimato da janela.

Na verdade, não foi tanto o medo. Poderia entregar o lanche pelo portão sem que precisasse abri-lo. Mas havia uma preguiça meio óbvia de quem estava acordada ainda às 5 horas da manhã. Estava frio também... Ele foi embora.

Instantes depois, outro barulho. Desta vez era o jornal que minha mãe assina sendo jogado pelo entregador na garagem do prédio. Há dois finais de semana, algum vizinho cara de pau chega antes e o carrega como se o produto fosse dele. Depois, talvez para se livrar do que chamam de pecado, o deixa na porta de casa, à noite, após estar bem informado. Esperamos, qualquer hora, descobrir o ávido leitor.

Lembrei do fato e, para evitar, no mesmo instante levantei, vesti o roupão e desci, sem medo nem preguiça. Na volta, deixei o jornal em cima da mesa como agrado para minha mãe e voltei para a cama.

No momento em que a cabeça deitou no travesseiro, a famosa voz da consciência quis conversar: "Você não desce para ver se uma pessoa está com fome, mas desce para pegar o jornal? Claro, é interesse próprio. Você ainda não entendeu nada".

A vida sempre arruma um jeito de bater na sua cara, até que se aprenda a ser condizente com aquilo que se prega e acredita. Numa semana em que a foto de um bebê morto na praia nos clama por humanidade, usá-la com o próximo, daqui ou de lá, se torna inadiável. A falta dela na madrugada do último sábado ainda está doendo como deve mesmo doer a dor da consciência.

Não corro mais

Aceitei ser testemunha de um casamento desconhecido no cartório, hoje. A noiva agradeceu, ficou feliz. Ninguém queria. Todos tinham pressa e só. 
Na lotérica, dia desses, "aguardem, por favor, 15 minutos pois o sistema está parado". Quinze minutos. Quase todos reclamaram: "Brasil". Lá fora estava um dia bonito para ver passar 15 minutos no 3º mundo, mas ninguém tinha tempo.
Só é permitido ter tempo em feriados. 
Acho que descobri que eu não corro mais.
Não corro mais para pegar ônibus.
Ando mais pela calçada da praia do que dos prédios, agora. 
Vejo as folhas das árvores passando por mim enquanto ando olhando para cima. O jeito como a luz passa por elas. E é bem bonito.
Ler coisas faz isso. Talvez ficar mais velho também. Não é tornar-se poético. É só a visão dos olhos "de ver" que vai mudando. E talvez seja exatamente o tempo que faz isso. Todos precisam (ou precisavam) tê-lo. 
Por isso eu não corro mais. 
Há problema nisso, ainda. 
Portanto, ocasionalmente, devo voltar a correr. Mas, com a graça do tempo que o tempo me deu, sem mais tropeçar no meu próprio pé.

Geração tecnológica

Às vezes você escuta uma banda, se apaixona ao primeiro acorde da música, mas não sabe a discografia completa, todas as brigas marcantes ou quem faz os arranjos. E tudo bem, sabe?

Às vezes você ama massa, caldeirada ou purê com carne moída, mas não sabe todos os temperos presentes nem o tempo de preparo para chegar àquele ponto. E tudo bem, também.

Às vezes você simpatiza com alguém, mas nunca conversou muito com ela. E tudo bem, mais uma vez. 

Tem coisa que a gente sente e pronto. 

Essa era da informação deixa tudo muito frenético. Virou absurdo desconhecer. Às vezes a gente não sabe mesmo e tudo bem em não saber, sabe? Aprender ainda é bom. Take it easy, geração tecnológica...

terça-feira, 21 de julho de 2015

Meu pai, um caixão e o Daft Punk

Era o dia da exumação do corpo do meu pai. Dia animador (né) para levantar da cama, tomar um banho, um café e seguir para o cemitério ver o que sobrou do que até então, tinha sido ele. Eu e minhas irmãs ignoramos este dia. Não nos interessou acompanhar um processo que considerávamos mórbido. Não era esta a lembrança que queríamos ter do nosso pai, até porque não combinava nem um pouco com ele esse tipo de coisa. 

Mas, minha mãe estava ali, firme e forte no propósito de ver o marido de volta a sua origem: "do pó viemos, ao pó voltaremos". A cara fechada, um bico desse tamanho, a energia pesada e um mau humor contagiante. Nem parecia minha mãe. 

Quem ligou para dar a notícia da exumação foi minha avó. Havia morrido um parente não muito próximo da linhagem Pimentel, cujo cadáver seria enterrado na campa da família. Por falta de espaço, o "descanse em paz" do meu pai foi interrompido. 

Minha mãe seguiu para este ritual com cara de poucos amigos. Ver o homem que amou, o pai das suas filhas, o Guizão cheio de vida se limitar a ossos, não lhe fazia bem. Ela representava, literalmente, aquele personagem que anda com uma nuvem pesada, cheia de raios na cabeça. Se tivesse uma cor, seria cinza.

Para piorar a situação, chegou atrasada no cemitério. O caixão já tinha sido aberto e o esqueleto dele, transportado. Só o que viu foi meus avós, pais do meu pai, um ao lado do outro, em silêncio e chorosos olhando para um saco plástico preto. No sepulcro, homens preparavam o terreno para o próximo morador.

_ Por que não me esperaram?
_ Não dava, Cida. Eles têm horário e não podíamos atrasá-los.

O mau humor da minha mãe se transformou em raiva. Como não a esperaram para acompanhar a exumação do próprio marido? Meus avós, percebendo a inconformidade dela sem que nada pudessem fazer, se despediram com um abraço e seguiram de volta para casa, carregando e dividindo aquela dor.

Não sei ao certo o que sentiram ao ver o filho assim. Nunca conversamos sobre esta experiência e na época eu fugia desses assuntos. Talvez, anos depois, eu viesse a perguntar, mas não deu tempo. Os dois já estão agora na companhia do filho. Devem estar felizes.

* * *

Para dar continuidade ao processo, alguém da família tinha que permanecer com os coveiros até o final. Minha mãe ficou. Pediu para ver o marido.  Em silêncio, lhe apontaram o saco preto. Na dureza da informação, caminhou até ele. Abriu. Ali estava Aguinaldo. O esqueleto daquele magrelo alto estava mais magro do que nunca. Ela se pôs a chorar. Como pode no fim, a gente se resumir àquilo? Eis que ressurge em uma lembrança inadequada ao momento, o falecido marido...

* * *

Meu pai era amante da música. Um dos passeios preferidos dele era ir à loja Ferrs, no Gonzaga, comprar cd's. Voltava sempre com novidades. A dupla de música eletrônica Daft Punk estava entre elas.

Around The World foi lançado em março de 1997, dois anos antes de sua morte. Arrebatou meu pai! E palhaço que era, ficava imitando no meio da sala a coreografia que um bando de caveiras, múmias e figuras estranhas faziam no videoclipe. Fora o humor negro que nos fazia sentir culpa por dar risada das piadas que não poderiam ser piadas. 



Mas, a cena é o cemitério. Ao lado do saco preto, envolta numa energia mais escura que a cor do saco, estava minha mãe. Imersa em pensamentos tristes que aquela cena lhe trazia à mente, permanecia séria e endurecida, bravejando mentalmente contra tudo e todos.

Quando ela conta a lembrança que teve num momento tido como inadequado, não tem como: imagino sempre meu pai ao lado dela, com "cara de engraçado", cheio de cinismo olhando para o que restou dele e dizendo o que ela relata abaixo: 

_ Olha aí, Cida... Que situação. Tô igual as caveiras do clipe do Daft Punk, lembra? Imagina eu dançando agora? Cópia fiel hein?

Pronto. Minha mãe que até então sentia só tristeza, teve que se segurar para não cair numa risada que daria medo aos coveiros que trabalhavam no local, afinal rir ali era coisa do sete-pele.

Relembrou os ensinamentos que adquiriu lendo os livros kardecistas que lhe agradam e falam da morte de uma forma natural, científica, mas fervorosa. Que o corpo material seria apenas o lar temporário de uma energia que transcende tudo por aqui.

Meu pai se fazia presente nessa energia e mostrava que, de fato, morrer não torna ninguém santo! Continuava vivo na memória de minha mãe e mantinha o mesmo humor que tanto o qualificava.

Tem gente que tem um certo talento para transformar cenas tristes em cenas não tão dolorosas assim. Aguinaldinho era (ou é né) uma dessas pessoas e fez questão de, uma maneira ou de outra, ajudar minha mãe a achar leveza naquele momento. E que inspiração mais fantástica ele achou para fazer isso.

A morte aliás, seria carregada de paradoxos e meu pai nos explicava essa tese ao dizer que o único momento da vida em que as mulheres sentiam-se magras, sem nenhuma gordurinha sobrando era quando morriam

Minha mãe saiu do cemitério melhor do que entrou. Chorava, ria e conversava com meu pai: você não muda né, Guizão. Continua palhaço. Uma alma engraçada! (E não penada).

No link, o clipe dos esqueletos do Daft Punk, aonde meu pai deve seguir dançando "ao redor do mundo"...

https://www.youtube.com/watch?v=ymei5EA5tz0

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Estrelas no cérebro

Cansei. Às vezes dá tanta merda na vida que é muito verdade esse lance de "duas uma": ou você se afunda de vez ou cansa do buraco e dane-se. Sai forte de lá. Passa a acreditar de maneira profunda naquilo que vai na mente e sempre esteve ali, esperando para ser ouvido de fato, sem muita opinião e ruído externo, apenas o que vêm do próprio coração e consciência. Talvez por isso buracos sejam profundos: para se aprofundar. 

Para dar certo hoje em dia, em época de desconstrução de quase tudo, têm mesmo é que chegar com o pé na porta (ao pé da letra, não da imagem que essa expressão traz à mente). O segredo sempre esteve na palavra acreditar, mas de verdade. Quando você para de prestar atenção no que querem os outros e passa a ouvir o que quer você, você dá certo. E é aí que você faz pelos outros. Cumpre a tal da sua missão, ou apenas aquilo que em algum momento, desenhou para si mesmo. É o que faz da sua vida não ser tão mesquinha e um pouco mais relevante em meio a tanta coisa sem graça. E relevância não têm a ver com a fama que se vende por aí, mas em ser importante para muitas pessoas, ou duas, dez no máximo, um cachorro.

Ser protagonista da própria vida pode demorar e o estalo acontece em um segundo. Por isso que dá medo de perdê-lo. E precisa de coragem, por isso dá medo também. E precisa ser profundo, mais medo ainda. 



Viver é um misto de egoísmo e humildade. Solidão e generosidade. Não se faz nada sozinho, sabemos. Mas quando se acredita em alguma coisa e se segue só, com verdade e vontade, é aí que outras mentes que pensam como você são atraídas e num tropeço se conhecem, se comunicam, se admiram e começam o que tiver que ser começado (para quem não acredita em energia e sintonia, se apegue em física quântica, dá no mesmo). 

Ser importante para aquilo que você acha importante. Dar importância para aquilo que te fez mudar de ideia e te empurrou para o melhor. Mudar é importante. Não há motivo para Einstein, Dumont, Sócrates, Pitágoras, Hendrix, Beatles, Bach, Beethoven, Tom Jobim, Galeano, Rubem Alves e tantos outros terem existido se for apenas para dar graça à vida? Se você se permite deixar de ser superficial, verá que não faz sentido só isso e até diminui o valor da cada obra que mudou e mudam cabeças pelo mundo. A palavra "graça" é mais profunda. 

Talvez tentar achar o equilíbrio entre manter-se fiel à si mesmo e ao que vêm dos outros, seja a opção para não parar.

Não se permita à pequenez das mentes que se apresentam a todo instante. Não há de ser tudo tão ínfimo. "Há no cérebro uma constelação gigante com mais de 100 bilhões de neurônios. A conexão entre os neurônios – sinapses – controla desde as batidas do seu coração até a lembrança de um amor antigo. O número dessas conexões cerebrais supera O DE ESTRELAS NAS GALÁXIAS e se você resolvesse contar uma delas por segundo, apenas na região do córtex (camada externa do cérebro), precisaria de 32 milhões de anos." É muito grande! Canse. Mas canse de ter medo. Canse de ser idiota, canse dessa mania de temer a reprovação dos outros que nem sabem se você almoçou hoje, se teve dinheiro para pagar as contas, se o café foi sem pão, se seu coração dói, se a ferida curou, se está mais forte, de bom ou mau humor pela manhã. Canse disso tudo, só não canse da vida. 


sábado, 23 de maio de 2015

Mãe

Sentada no banco da farmácia, aguardo a minha vez e observo. No balcão de atendimento: 
- Moço, quanto é este remédio da receita? 
- Um minuto senhora. Olha, ele custa R$ 78,00 mas com desconto sai por R$38,00.
- Quanto moço?
- Ele custa R$ 78, mas com o desconto sai por R$ 38.
- R$38? Obrigada.
Ela vira de cabeça baixa, segurando o filho pela mão.
- Mãe, e o remédio?
- Não dá filho, não tenho esse dinheiro.
- Mas e esse brinquedo? Ele pergunta segurando o que na verdade é um vidro de xampu da Turma da Mônica.
Ela tira o "brinquedo" da mão do filho e coloca de volta na prateleira.
-Vamo, filho.
E sai na chuva, sem guarda-chuva.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Crise

Estágio, estágio, estágio, estágio, vaga! Requisitos profissionais: nomes bonitos em inglês, porque o jornalismo (claro) também passou pelo raio gourmetizador. Daí você tenta continuar otimista, mas em dois minutos de Facebook, colegas queridos de profissão compartilham: SBT demite 46, Jovem Pan demite Carsughi, pesquisa aponta que 70% dos brasileiros não leram absolutamente nada de livros no ano passado. Estadão demite 120 funcionários e encerra o caderno de esportes, com circulação apenas aos domingos. Folha inicia demissões que podem atingir 50 jornalistas e acabar com os suplementos. Crise na imprensa. Crise. Crise. Tentar não se envolver nessa energia é tão difícil que me lembra aquela música "é como mergulhar num rio e não se molhar". Outro companheiro de profissão (Fred) pergunta:

Caro colega jornalista, momento enquete: O que você vai fazer quando o jornalismo vir falecer?
a) Virar publicitário
b) Virar assessor
c) Virar blogueiro
d) Virar ativista
e) Dar uma volta ao mundo
f) Virar jornaleiro
g) Sentar e chorar.
h) Jornalismo morreu faz tanto tempo que já virou zumbi.

Eu acho que vou escrever um texto novo para meu humilde blog contando como está sendo a vida de uma recém-formada em uma profissão que parece estar com o pé na cova (mantenho a esperança nesse "parece estar"). Já adianto que não é divertido, que quando achei ter chego no fim, percebi que era só o começo e que a luta para manter o otimismo é tão grande quanto a força para não transformar o tal do sonho em pesadelo. Sigamos.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Dos textos inspirados!!!

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/217974-o-ultimo-a-sair.shtml

Gui

- Quem mora com você na sua casa?
- A minha mãe, minha irmã, meu sobrinho e uma cachorrinha, a Juli.
- E seu pai?
- Meu pai morreu.
- Foi Deus? 
- O que, Gui?
- Foi Deus quem matou ele? Aquele safado! Eu vou matar ele e roubar seu pai de volta, tá bom?
- Mas Gui, Deus é bom. Tem de respeitar ele.
- É nada! Aquele safado...

Histórias de uma irmã estagiária em escola infantil. Gui tem 7 anos e é uma criança especial (portador da síndrome de Asperger). "Ele é a alegria da sala." Palavras de minha irmã. Percebe-se, rs!

quarta-feira, 13 de maio de 2015

“Um dia podemos ter prova de múltiplos universos”... e tem gente achando que o mundo gira em torno do próprio umbigo e nothing else matters...

http://www.brasilpost.com.br/2015/05/12/stephen-hawking-previsoes_n_7268614.html?fb_action_ids=1083987728282690&fb_action_types=og.likes

Sensacional esse cara. E mais ainda é uma mente tão brilhante, cheia de informações, ficar presa no diagnóstico de uma doença que paralisa os músculos, mas não afeta em nada as funções cerebrais. "Síndrome do encarceramento". Um gênio preso na lâmpada. E ele nasceu exatamente no aniversário de 300 anos da morte de Galileu. Coincidência, né? Ou não... "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia"

terça-feira, 12 de maio de 2015

"O café, um cigarro, um trago, tudo isso não é vício 
São companheiros da solidão".

Tem gente que escreve luz.

“ (...) O mundo é isso, revelou: um monte de gente, um mar de foguinhos. Não existem dois fogos iguais. Cada pessoa brilha com luz própria, entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, e fogos de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem fica sabendo do vento, e existe gente de fogo louco, que enche o ar de faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros... outros ardem a vida com tanta vontade que não se pode olhá-los sem pestanejar, e quem se aproxima se incendeia.” Tem gente que escreve luz. Galeano.
https://www.youtube.com/watch?v=gujK5WEVG8g&feature=youtu.be

Domingo de outono

Eu ia andar na praia para aproveitar o dia lindo que faz hoje. Dias de maio... Mas aí eu comi feijoada da mãe e antes mesmo de acabar o deguste, a cadeira já havia tratado de me acomodar. 

Sentei no sofá para fazer a digestão, ainda com a ideia do pé na areia. Mas um bom e fresco vento começou a entrar pela janela. Vento bom que acaricia os cabelos e a cortina e tem cheiro de maresia. 

Deitei. Do sofá eu vejo o céu. Azul, azul de maio. Dois pássaros voam bem lá no alto e aqui embaixo tudo fica em paz, como deve sentir quem nasce com asas. Deve ser para isso que serve o voo: sossegar. Deve ser por isso que humanos ainda não voam: somos providos do desassossego. Abençoado seja quem conhece a função profunda do verbo observar. 

O vento está tão fresco que permite até um fino lençol nas pernas acomodadas no braço do sofá. Ao lado, o neném repousa tranquilo nos braços de minha irmã. Na TV, Dr House e seus inteligentes diagnósticos. Na janela do prédio da frente, dois vizinhos conversam animados acompanhados por duas loiras geladas encostadas no batente. Camisa é de futebol. E de clássico que começa logo mais. 

Eu desisti da praia hoje. Dei as mãos para a preguiça desta tarde e me deixei admirar por ela. Tirei os óculos para olhar a árvore que mora na esquina, mas perto da minha janela. Tem coisas que mesmo míope, se mantém belas. Domingo de outono é uma delas. E essas pequenas grandes coisas também.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Máquina De Escrever (Pedro Luís & A Parede)

Meu coração é uma máquina de escrever
As paixões passam
As canções ficam
Os poemas respiram nas prisões
Pra ler um verso, ouvir, escutar
Meu coração falar
Até se calar a pulsação
Meu coração é uma máquina de escrever
No papel da solidão
Meu coração é
Da era de Guttemberg
Meu coração se ergue
Meu coração é
Uma impressão
Meu coração
Já era
Quando ainda não era
A palavra emoção
Mas há palavras no meu coração
Letras e sons
Brinquedos e diversões
Que passem as paixões
Que fiquem as canções
Nos poemas, nos batimentos
Das teclas da máquina de escrever
Meu coração é uma máquina de escrever
Ilusões
Meu coração é uma máquina de escrever
É só você bater
Pra entrar na minha história

Alguns trechos da entrevista com o raro Galeano

Ele diz que escreve à mão. Mas não é verdade. As palavras de Eduardo Galeano, palavras lutadoras e apaixonadas, palavras “sentipensantes”, são escritas com o corpo todo: as veias, as tripas, o coração. São cinquenta anos dedicados ao ofício de denunciar o que incomoda e anunciar o que pode ser.
Para mim foi muito importante esse período de formação, foi ali que se deu a revelação do magnetismo do poder da palavra.
Depois comecei a reconhecer nas palavras um poder de comunicação que eu não sabia que elas tinham. E então começo a escrever.
Ainda em alguns lugares, quando morre um velho, se diz que é uma biblioteca que se incendeia. São pessoas que, com conhecimento acumulado no espírito, encarnam um tempo, às vezes uma cidade, um país.
Tem histórias que são faladas e outras são escritas. Tem histórias para falar e histórias para contar por escrito. Não é a mesma coisa, são regras diferentes. Foi a partir do contato com pessoas que eram capazes de contar o que acontecia e o que tinha acontecido antes que tive essa revelação de que escrever podia valer a pena, de que a palavra como instrumento de comunicação podia ser tanto ou mais importante que a imagem. Porque eu sempre sentia aquela distância entre o que queria dizer e o que conseguia dizer na pintura, no desenho. Era sempre uma distância enorme, um fosso profundo que não dava para atravessar, um abismo fundo demais.
A explicação dessa teimosa capacidade de sobreviver está nessa comunhão entre a palavra e o ato. É uma comunhão muito difícil de encontrar...
Então, essa tensão de forças que lutavam dentro dele era o motor da imensa energia que ele transmitia. (Che)
Evidente que é a necessidade de comunicação. É uma necessidade inexplicável de comunicação com os demais, que acho que também pode ser chamada de necessidade de comunhão. Porque, quando você se comunica verdadeiramente, está de alguma maneira comungando com o leitor. Quando um livro está vivo, te toca, tem dedos, toca a tua face. As palavras são como dedos que te tocam também. Tenho essa necessidade imensa de comunicação e de comunhão.http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/4984-eduardo-galeano-leia-entrevista-de-caros-amigos-na-integra

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Indiferença

2h10 da madrugada desta quinta-feira. Estava deitada na cama sem sono quando ouvi um forte barulho. Abri uma fresta na janela, mas não enxerguei nada. De repente, o barulho mais uma vez. Vejo um Fusca azul balançando e a porta do lado do motorista abrindo. O carro está parado quase na esquina da rua onde moro, debaixo de uma árvore. De longe não enxergo direito o que está acontecendo, mas vejo a sombra de uma pessoa entrando no veículo abaixada e escondida. "É roubo". 

Pego o celular para ligar para a polícia, mas ao mesmo tempo uma curiosidade me pede um pouco mais de tempo. Não consigo ver o que está acontecendo lá dentro, apenas a sombra de alguém. Com todo respeito aos policiais militares, mas infelizmente, pelo jeito como abordam os cidadãos, eu evito ao máximo precisar do serviço deles. 

Passaram-se cinco minutos, o carro está quieto e nada da pessoa. Começo a achar estranho porque se fosse um assalto, este bandido era muito lerdo. Eis o questionamento que se apodera de mim: "ligar ou não para a Polícia Militar?". Penso que talvez possa ser o dono do carro e bêbado, perdeu a chave, arrombou a porta e agora dorme. Depois que deve ser um ladrão em começo de carreira, já que o tempo passa e nada do carro ligar. 

Em meio aos pensamentos, outro estalo e o vidro da frente se abre um pouco. Lembro da história de um conhecido que teve seu amado Fusca roubado na porta de casa, também durante a madrugada. O quanto aquilo o entristeceu pois havia gasto além de dinheiro para as peças originais, tempo e dedicação ao veículo querido. A lembrança me fez tomar a decisão: ligar 190. 

- Emergência Polícia Militar.
- Acho que estão roubando um carro na minha rua.
- Por que a senhora acha isto?
- Porque eu estava deitada, ouvi um barulho e pela janela vi alguém entrando abaixado num Fusca...
- Fusca? É furto com certeza! Roubam Fusca direto, senhora. Endereço, cidade?
Passei os detalhes.
- Uma viatura está a caminho. Obrigada por fazer a sua parte. Boa noite.

Pela janela, continuo a espreitar, nervosa e confusa com o que tinha feito. Quem dera eu acreditar que ligar para a polícia fosse fazer a "minha parte". Se de repente eles atiram na pessoa? Serei responsável pela morte de alguém. Nunca vou me perdoar. Se é só um bêbado? Se é alguém realmente mau? Deveria estar dormindo, daí não veria nada disso!" Um milhão de pensamentos voam sobre minha cabeça. Luzes de sirene iluminam o meu quarto. Dois policiais descem do veículo com a arma em punho, olham pela janela e gritam:

- Ae camarada, o carro é seu, o carro é seu? Não? Como é que você entrou aí? Desce, desce! Desce porra, que demora é essa?
Sai desesperado e com as mãos na cabeça um homem alto, forte e descalço.
- Não sou ladrão não, senhor. Não sou...
- É não? Como você me explica essa porta arrebentada? Encosta no muro. Não mandei tirar as mãos da cabeça. Mãos na cabeça, caralho! 
O homem, de costas para o muro responde em sins frenéticos com a cabeça.
- Nome, pai, mãe? Se você tiver passagem...
- Não tenho não senhor... desculpa! É que...
Sinal para se calar. O policial entra na viatura para checar os dados enquanto o outro continua com a arma apontada para ele. Consegui ouvir o nome da mãe: Maria Aparecida, como a minha. E o ano de seu nascimento: 1970, ou 45 anos de idade. 
De dentro da viatura, fala o PM:
- Sai fora cara! Libera ele, X. Tá limpo esse aí.
- Obrigado, eu não sou ladrão não. Posso pegar meu sapato e minha mochila? Tá dentro do carro. 
O PM faz que sim com a cabeça. Ele pega suas coisas e vai embora. Vira a esquina em passos largos, com o sapato nas mãos e a mochila num ombro só.
Antes de partir, os policiais fazem uma vistoria no Fusca
- Tá abandonado essa porra. Ó o estado disso...

Agradeci por eles não terem batido no suposto ladrão que era só um sem teto. E isso não tem nada a ver com bondade, apenas não acredito que essa seja a solução para quem já apanha da vida e de maneira bem mais dolorida. Deitei imaginando para onde aquele cara iria. Talvez ele tivesse invadido o carro para dormir, porque na rua estava frio. Talvez já tivesse notado que aquele Fusquinha velho estava abandonado e por isso decidiu arrombar a porta. Talvez ali fosse um novo abrigo para ele, quente e protegido, mas eu estraguei a moradia no comodismo da minha janela. Me senti protestante de panelas.

Não reparei naquele carro abandonado na rua de casa. Claro que não. Desde quando o ser humano repara no abandono alheio ou pessoas coisificadas? Como são falhas as nossas relações. Eu não notei porque tenho a minha casa, a minha cama com edredom.O homem já tinha percebido a solidão daquele Fusca. Era tão abandonado quanto ele. A gente sempre se identifica com os nossos semelhantes.

Ainda espiei mais vezes para ver se de repente ele voltava. Ficaria com a consciência mais tranquila sabendo que ele estava dormindo ali. Mas ele não voltou. O carro está lá. Debaixo da árvore da esquina. E há duas semanas, quando tirei a foto abaixo, ele já estava. E eu não reparei. Quanta apatia ainda vive em nós. 

Eu nunca sei a melhor maneira de ajudar. Impediria um roubo caso fosse. Pioraria a vida de quem já não vive. Quem assalta, quem é assaltado, a indiferença. Ainda não sei quem é vítima. 

O Fusca abandonado. A foto marca duas semanas, mas não sei há quanto tempo está aí.





terça-feira, 5 de maio de 2015

Misture os dois

"Não é que o mundo seja só ruim e triste. É que as pequenas notícias não saem nos grandes jornais. Quando uma pena flutua no ar por oito segundos ou a menina abraça o seu grande amigo, nenhum jornalista escreve a respeito. Só os poetas o fazem." Rita Apoena

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Mão única

Gosto de olhar a mão das pessoas no ônibus. O jeito que cada uma segura para se segurar no pleonasmo mesmo. Quando consigo um lugar no concorrido banco, mais do que concurso público ou parlamentar, coloco em prática meu hobby. 

Os óculos me ajudam no disfarce de olhar e enquadra melhor a mão que observo. A primeira foi a de um senhor de camisa e mochila vermelha. Tinha as unhas grandes e manchas de vitiligo. No pulso muitos elásticos, destes que se usam em escritórios. Na outra mão, um papel em forma de canudo enrolado e preso também em elásticos. Talvez os usasse como adornos. Talvez fosse de sua profissão, apenas. Artista plástico, colecionador, cobrador de ônibus com certeza se ainda existisse este ofício por aqui. Lembro que eles viviam com elásticos nos pulsos. 

Em seguida, mãos femininas. Deviam ter em torno de 22 anos. Unhas pintadas de preto, mas apenas às pertencentes ao dedo mindinho. Pensei: "Nova moda, será"? Mas, ao olhar mais de perto percebi que nas outras tinha resto de esmalte. Ela devia ser mais uma dessas moças com mania de arrancá-lo com a boca, mas nem sempre dá tempo de completar todos os dedos antes que alguma enxerida como eu perceba. 

Com as constantes freadas, percebo que algumas mãos se tocam. A reação é sempre a mesma: tirar rapidamente a mão do local onde outra ocupou o lugar, quase que sem querer. Como se o toque causasse um choque, algo proibido ou até mesmo incômodo. Ajo da mesma maneira quando uma mão toca a minha sem que fosse permitido. Na verdade dá um certo susto, mas no ônibus já notei que não é intencional. É apenas um movimento causado pelas curvas do transporte público que acaba igualando as mãos à mesma categoria. O toque é uma das maneiras mais fáceis de se identificar as verdadeiras intenções, e com tantas histórias de contatos desrespeitosos, deve ser o susto uma forma do inconsciente nos lembrar delas. 

Sentada, consigo observar os pés também. Geralmente não há saltos. Quem faz do ônibus seu transporte diário, comumente opta por trajes que lhe tragam mais conforto do que a viagem propriamente dita. Hoje tinha um cigarro inteiro no chão. De que bolso será que caiu? ... Como é bom divagar.

Quando está muito lotado, imagino que aquele corrimão preso no teto parece mais um varal de mãos e braços humanos, um de cada cor - e como somos coloridos! Quando se está um ao lado do outro, notasse como é grande a escala das cores humanas: vários são os tons de branco, amarelo, pardo e negro. Vermelhos de sol, bronzeados dos acostumados a ele. 

Mais cedo, ouvi o papo de uma moça em cadeira de rodas dizendo que em geral, os motoristas eram solícitos com pessoas deficientes e que apenas uma vez usou o serviço de denúncias para reclamar de um que deu a volta só para não ajudá-la a subir no veículo. Que até os 27 anos levou uma vida normal, mas devido a uma doença degenerativa na coluna, havia ficado paraplégica. Desci no momento em que dizia ter aprendido muitas coisas depois da mazela. Fiquei imaginando o que será que ela aprendeu. 

Eu não sei o que eu aprendo olhando, mas gosto de fazer isso. Acho que talvez eu não aprenda nada, mas é de olhar que crio histórias ou apenas relato o que a minha imaginação pensa estar vendo. Numa cabeça que ultimamente anda imersa em preocupações de uma nova vida que demora a se desenhar, momentos como esses são libertadores porque permitem ao cérebro pensar em coisas que não sejam só sobre você mesmo. 

Olhando mãos eu crio lavadeiras, cuidadoras, mãos mães e mãos pais. Mãos bonitas, mãos feias, mãos pianistas, mãos de manicures, mãos boas e más. Mãos experientes ou somente velhas, afinal rugas não trazem necessariamente o conhecimento. Mãos doentes, mãos de cura, falta de mãos, mãos solitárias, mãos acompanhadas de outras porque se entrelaçam nos dedos de alguém ou porque, através de uma aliança, indicam que aquelas mãos já tem companhia. Mãos que fazem crochê, que ajudam a ler o livro, o jornal, as mensagens do celular, selecionam a próxima música, desenham a cruz ao passar em frente à igreja ou se juntam em menção a uma pequena oração diária. Mãos que fazem sinal para os ônibus que as levam onde precisam ir, são as mesmas que indicam o fim daquela viagem. 

Ao descer, tenho sempre a impressão de mãos sujas, afinal quantas já seguraram o mesmo corrimão que as minhas? Por onde passaram antes de estar ali? Espirros, banheiros, coceiras indesejáveis coçadas por elas... 

A primeira coisa que faço quando chego em casa é lavá-las. Penso que a água e o sabão levam embora todas as mãos que a segundos atrás estavam nas minhas. Talvez essa sensação seja porque muitas mãos podem encaminhar as minhas para outra direção e as tirem do foco que desejam realmente seguir. Talvez valha a pena dar mais atenção às coisas que fazem as mãos sossegar.

Hoje, ao enxugá-las, reparei melhor nelas. Me veio a lembrança de estudos que afirmam haver em cada mão, uma única linha da vida e não há sequer ninguém no mundo com a mesma linha que a sua. Da mesma forma se fazem as impressões digitais. Sejam talvez as mãos um lembrete da solidão que é viver? E se há tanta evidência em ser único, algum mérito deve ter a unidade de cada ser. 

Mas, ao pensar que esse texto terminaria evidenciando a solitude, percebi que escrevia não com uma, mas com duas mãos. Sendo assim, imagino que acabei de ganhar um afago dessa solidão que agora se mostra não tão só assim. Há pares em unidades. 

domingo, 5 de abril de 2015

Aos mestres com carinho

Dois meses se passaram do fim da faculdade. Acabaram-se as pencas de estágios e sobrou um deserto chamado mercado de trabalho. Desde que me vi formada, uma coisa me preocupa: a falta de inspiração para escrever. Creio que em meu humilde blog, tenho uns seis textos parados que não consigo terminar. As ideias estão confusas, o vocabulário está pobre. Tenho comigo que este bloqueio ocorre devido a fase de rede vazia. Mantenho a esperança que quando conseguir achar meu caminho nesta estimada área e voltar a conviver com pessoas que de fato me sintonizo, as palavras fluirão novamente. 

Sinto falta do ambiente da faculdade. Era onde eu mais gostava de estar porque ali encontrava cabeças pensantes e principalmente falantes. O silêncio não tem muita vez dentro de uma sala de aula. Ainda bem. Ali não é lugar para ele. Notei que escrevia muito mais no período universitário . Tinha dias de aulas tão sensacionais que a cabeça saía fervilhando e escrever era o único modo de desabafar e conseguir dormir. Percebi que depois das aulas passei a opinar usando argumentos tão sólidos, que algumas pessoas demonstravam até um certo receio em retrucar. Penso que se minha opinião causava isto, é porque alguma verdade ela tinha ou no mínimo fazia repensar. Mal sabiam elas que eu falava tão cheia de propriedade porque estava apenas imitando os meus professores. 

E não deixei de ler para que a inspiração fosse embora, pelo contrário. Leio os jornais, confesso que mais via internet, mas leio. O problema é que quase sempre termino a leitura com uma sensação de que falta algo. Isto não acontecia em sala de aula, principalmente com alguns professores que elevei à categoria de Mestre. Mestres porque sabiam do que estavam falando. Tinham argumentos tão bons que faziam os alunos se olharem, dizendo: "que foda"! É como se o meu verdadeiro jornal fosse a sala de aula. Ali as informações eram completas, contextualizadas, profundas de fato. Sinto falta desse meu jornal diário. Da maneira como eram passadas as notícias. De ver esta arte sendo manuseada pelas mãos de quem sabe. A lição agora é aprender a me virar sem eles (vocês). 

Sendo assim, o que posso concluir é: professores, vocês conseguiram ensinar a essência do jornalismo. Não sei o que vou enfrentar daqui pra frente e me assusta achar que não vejo na imprensa atual, o jornalismo que aprendi em aula, mas posso afirmar com uma certeza de alma que eu saí da faculdade sabendo o que é ser jornalista. Espero saber cumprir tão bem esta função.

Agradeço a todos os professores da forma mais simples, mas talvez mais sublime de se agradecer a alguém, principalmente aos jornalistas: com palavras. Sei que vocês recebem homenagens todo ano dos alunos gratos. Talvez já estejam até cansados disso tudo. Mereciam muito mais, mereciam uma remuneração tão bela quanto o trabalho de vocês. Mas, quem sabe estes dizeres de uma aluna agradecida e mudada, alimentem suas almas com aquela boa sensação de dever cumprido. De saber que estão conseguindo abrir o campo de visão de quem passa pela sala de aula de vocês. Imagino que deve ser isto o que de fato um professor almeja. 

Existem pessoas que tem medo de elogiar. Pregam que o elogio alimenta o ego e envaidece o ser admirado. Sempre achei isso uma bobeira. A vida é muito curta para guardar dentro da boca palavras que dão ânimo à peleja do trabalhador. Assim como o dinheiro nos bonifica pelo trabalho, elogios sinceros e no tempo certo, bonificam a essência. É um tônico que empurra para a próxima.

Um dos meus maiores medos sempre foi que a morte levasse aqueles que abrilhantam minha vida sem que eles soubessem o quanto eram luz. Saibam então, queridos mestres, o quanto vocês me iluminaram!

Encerro lembrando que a nossa função mais difícil talvez não seja escrever, mas nunca perder a capacidade de se indignar, de ir atrás, de querer mostrar uma outra visão. E como estes dias vi no Facebook que: "ser jornalista é querer salvar o mundo mesmo sabendo que esta merda não tem mais jeito, não!" Que a gente prometa ser este o nosso exercício diário. 

E que guardemos cravados no nosso coração uma das lições que considero de enorme valia, aprendida em Teoria da Comunicação: que mesmo quando parecer que o mundo está caminhando para o caos, se houver um apagão e toda tecnologia que temos hoje perder o seu valor, nós sempre teremos um ao outro se mantivermos as palavras. 

Um salve à arte da comunicação! Obrigada!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

"Elimine a causa que o efeito cessa"

Quando eu tinha 16 anos, fumava cigarro na escola porque aquilo era malandragem. Não tinha medo de briga. Encarava as pessoas, respondia, era meio revoltada (minha mãe que diz). Andava com gente que roubava "goró" no mercado para diversão de sexta-feira. E achava irado. Um dia quis fazer igual.

Sendo malandra, peguei um saquinho de confete de chocolate e coloquei no bolso.Uau, maior adrenalina. Mas, de repente lembrei da minha mãe. Lembrei do meu pai que já tinha morrido, mas naquele momento parecia materializado ali do meu lado e muito bravo. Vi o segurança na porta. Dei meia volta e coloquei minha malandragem de volta na prateleira. Não consegui.

Com 16 anos, não me lembro de medir as consequências, de saber o que sei hoje, nem de pensar que um dia enxergaria o mundo do jeito que hoje enxergo. Antes voltava sozinha de madrugada para casa com capuz na cabeça para acharem que eu era "perigosa" e não mexerem comigo. Hoje, não saio de casa sozinha tarde da noite nem que a tal vaca tussa. Têm-se muita coragem nesta idade. Isto é bom e ruim. 

Com 16 anos não me lembro de ter personalidade bem formada e de ser até "maria vai com as outras", às vezes. Lembro das atitudes que tive em certas ocasiões e que hoje não faria igual de jeito nenhum. Lembro que responsabilidade e cuidado não eram sinônimos que faziam muito sentido e de achar legal um monte de coisa que só agora eu sei que não são tão legais assim. E não digo de responsabilidade em relação ao trabalho, porque já trabalhava nessa época. Digo dessa coisa de pensar no que se faz.

Roubou um carro (sem vítimas), se arrependeu e decidiu dar outro rumo à vida. Entrou para a carreira militar. Mas, um ano depois descobriram o que ele tinha feito. Merecia uma segunda chance? Foi preso e sabe-se lá o que houve com ele.                                
Com 16 anos, na boa, é mais digno assumir que não sabíamos nada da vida. Você lembra como você era? Passei pela adolescência sem consequências graves de fato. Só que eu tive mãe. Tive família e amor. Tive tempo de aprender. Tive amigos que tiveram isso tudo também, mas caíram mesmo assim. E tive outros que mesmo sem nada disso, andaram na linha. Questão de caráter, talvez. De "toda regra ter exceção".

Uma das coisas que aprendi também é a velha máxima "se coloque no lugar dos outros". Tão clichê e tão pouco usado. Morando na lama, convivendo com a miséria, nãos tão doloridos e tão cedo,  eu confesso que não sei como lidaria com isso, ainda mais no furor da juventude. Vejo gente que tem tudo e fica revoltado com o preço do dólar (e com bem mais de 16 anos). Imagina a quem é negado o básico de todo o dia? É muito motivo pra ficar puto, não é? Me pego ficando por menos. Você não?

As chances dessa criança na vida são as mesmas de quem estudou digamos, na Escola Americana?
Nos países em que a educação funciona e a desigualdade já quase não existe, a violência também é quase nula. Já naqueles onde a desigualdade social é gritante, a violência também é. Não é coincidência. É fato. E é tão cansativo citar isso de novo... Para que eu vou roubar se eu tenho? Para que correr o risco de ser preso, se não me falta? (Os políticos não se questionam assim, com certeza).

Crimes deveriam ser julgados pela gravidade, não pela idade. Um garoto que estupra e mata não pode ficar impune, assim como alguém de 40 anos que comete o mesmo ato também não. O fato é que os maiores crimes não são dessa natureza no Brasil. Aí está o problema de se enquadrar todos no mesmo quadrado.

O ser humano é basicamente feito de emoções. E que emoções são criadas na cabeça de crianças sem pais, sem amor, sem comida, sem educação? Você seria quem é, nascido nessas condições descritas acima? Eu respondo por mim: eu acho que eu não. Se a gente é o que nos ensinam, o que será que eu teria aprendido? E se minha família não fosse esta?

Será que todos que estão na cadeia são mesmo tão maus assim? Não poderiam ali existir pais de família desesperados? Jovens inconsequentes? Falta de educação? Se vivesse por um tempo a vida de um desses homens, será que também não se enxergaria tendo a mesma atitude que o jogou na cadeia?

Qual o tamanho do abismo entre eles e você?
A falta de dignidade traz o que há de pior no ser humano. O sistema penitenciário é falido. Já não cabe quem está lá, imagina jogar mais um monte de garotos... Não é uma visão de pessoa "boazinha", só acho tão claro que não consigo entender quem não enxerga isso também.

 A cadeia no Brasil não é um lugar para se restabelecer seres humanos de volta à sociedade, é apenas um depósito de gente que causa problema. Não há intenção de tentar melhorá-los.

Tapa na cara e "seu merda" lhe instigariam a se tornar um bom rapaz?

Com o tempo, todos endurecemos a casca porque a vida apronta e machuca todo mundo. Mas tem gente que já nasce na dureza cedo demais. E é uma dureza que talvez a gente morra sem conhecer. É fácil ser mau nessas condições. Sem elas, a dureza amolece.

Cadeia é agir no efeito. Educação é agir na causa. É difícil ver isso?

Seu filho?
Jogar jovens de 16 anos numa cela é tirar deles um tempo precioso de aprendizado e maturidade. É cobrar algo que não foi ensinado. É continuar abrindo mão do direito básico à educação. É tirar do governo a culpa que eles tem com essa juventude. Enquanto eles vão morrer presos ou pouco tempo depois que saírem, nascerão mais meninos nas mesmas condições que os levaram por estas portas. Logo serão jovens que caminharão pelo mesmo caminho dos que já se foram. É um ciclo que não tem fim. Redução da maioridade penal é mesmo a solução?

Não posso dizer que tenho dó do moleque que me rouba, tenho medo e saio correndo quando percebo alguém com esta intenção. Mas, sinto-me na obrigação de ver que ele é o efeito do que vem de cima, ou melhor, do que deveria vir, mas não chega. Sendo assim, essa luta que a sociedade cravou não está contra as pessoas erradas?

"Quando for roubar dinheiro público vê se não se esqueça que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado ao ter que ver sua família passando fome". Assim canta Mv Bill em Só Deus Pode Me Julgar.

Quase ninguém nasce mau, tirando os casos de psicopatia. Ele brota em terreno fértil que esse cenário triste produz.

Me pego em conversas de bar imaginando como seria o mundo sem pobreza. Ela não é algo natural, é imposta por este sistema egoísta que criamos desde sempre.

A miséria explica a violência. Creio que para ela, tenha perdão. Já para o mau caratismo, o caminho deve ser mesmo o inferno.

Uma lembrança

Há um tempo, um vídeo de uma propaganda tailandesa viralizou na internet com legendas "cuti cuti". Os mesmos indivíduos que diziam: "o mundo precisa de mais pessoas assim", dias depois,  aplaudiam miss Sheherazade e vociferavam contra o menino de 15 anos amarrado num poste e espancado no Flamengo. Creio que elas não entenderam a mensagem do vídeo que elas mesmas compartilharam.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Silêncio.

Todo mundo fala demais. Tudo é motivo de opinião. Tem barulho o tempo inteiro. Falam da menina que deu sem camisinha na tv. Falam do casamento da famosa. Falam do vestido popular da Renner usado na festa. Falam da desgraça alheia. Falam dos selfies tirados nos estúdios da "central" do jornalismo. Falam, falam, falam. Falas vazias. Desperdício de palavras. Ninguém mais ouve. Amanhã não se lembra de nada. Relevância em extinção. E assim o tempo passa. Um pouco de silêncio sempre fez bem.Tem coisas que não tem explicação, mas até isso querem explicar.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A de alma.

Estou convencido de que há um tipo especial de beleza física externa que se possui quando se é bom… Há uma espécie de beleza que começa no interior e vai se desenvolvendo: em primeiro lugar brota no coração e logo faz com que floresça todo o conjunto, como uma árvore que se renova a cada ramo e a cada broto. A alma é como uma chama que faz com que todo o corpo seja transparente. Qualquer atriz poderia se parecer com Helena de Tróia ao usar um batom e um pouco de maquiagem, porém ninguém poderia parecer-se a ti, sem ser uma dádiva de Deus.
(G.K. Chesterton)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Música, alimento de minha alma.

"Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música.
Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas.
Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas
para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes". -Rubem Alves

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Amélie Poulain

"Olá. Minha querida Amélie. Você não tem ossos de vidro. Você pode suportar a vida. Se deixar passar essa chance, com o tempo, seu coração vai ficar tão seco e quebradiço quanto o meu esqueleto. Então,vai. Pelo amor de Deus".

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Por isso que a gente fecha os olhos...

http://gq.globo.com/Corpo/Saude/noticia/2015/01/memoria-tem-maior-precisao-quando-olhos-estao-fechados-diz-estudo.html

Bom pra avaliar o tempo gasto na vida on line.

http://lounge.obviousmag.org/monica_montone/2015/01/pesquisas-apontam-quem-passa-menos-tempo-no-facebook-e-mais-feliz.html#ixzz3PAV4vRDI

Dia D, de desânimo.

Tem dias que eu acordo entendendo toda a tristeza que sentia os meus grandes ídolos. Compreendo a morte prematura das pessoas sensíveis demais que não souberam viver nesse mundo pesado na maioria do tempo. Entendo porque Cazuza cantava que via "um museu de grandes novidades", quando leio proposta de cura gay em 2015. 

Entendo Renato Russo ao cantar que "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque na verdade não há", ao ler a notícia de hoje informando que Steven Rodriguez, o grande pensador de A$AP Rocky, grupo de Hip Hop que eu adoro, foi encontrado morto aos 26 anos. "Ele levava a A$AP muito a sério, mas nunca se levou a sério", lamenta o amigo Andy Capper. Assim como infelizmente faz a maioria dos artistas, ele também o fez: se largou. 

Lembro de Chico, "tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu", ao ler que policiais no Quênia lançaram gás lacrimogênio contra crianças nesta segunda-feira. Elas protestavam contra a ordem de um poderoso político que mandou derrubar o playground da escola a fim de construir um estacionamento. Dinheiro. 

Entendo Elis, conversando com os marcianos ao ler que "a elite (1% da população mundial) já acumula riqueza equivalente a tudo o que os demais 99% das pessoas detêm": "Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra. Pra variar estamos em guerra. Você não imagina a loucura... Ui, gente fina é outra coisa, entende?" 

A concentração de riqueza é cada vez MAIOR, o que me pede escrever em caixa alta para ver se ajuda a clarear o sentido deste superlativo. "Uma em cada nove pessoas ainda passa fome no planeta que produz alimento para TRÊS PLANETAS". Isso mesmo, três. E a culpa não é do sistema, é do ser humano que criou o sistema. De nós. A gente continua negando comida. E a gente continua achando que está em evolução. Ok. 

Dou play em Lenine, cantando Paciência pra ver se ouvindo isso assim, de fone, bem lá dentro do ouvido, fica mais fácil compreender a mensagem. "O mundo vai girando cada vez mais veloz. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós... Um pouco mais de paciência". Mas, na mesma música, Lenine deixa a dúvida:" Será que é tempo que lhe falta pra perceber? Será que temos esse tempo pra perder?" Eu sinto que não. 

O shuffle do celular não me parece estar nem um pouco embaralhado e manda Time, Pink Floyd, em seguida: "Cada ano vai ficando mais curto. Parece não haver tempo para nada. Planos que dão em nada ou meia página de linhas rabiscadas. Esperar em quieto desespero... O tempo se foi, a música terminou. Pensei que eu tivesse algo mais a dizer". 

Lembrei dos últimos artigos que li sobre a Geração Y, ou nós, jovens nascidos na década de 80 pra cá. Nunca se fez tanto barulho sem sentido. Nunca se falou tanto sem nada a dizer. Continuam esperando da gente que alguém salve esta geração bundona, que não canta porque sente, canta porque está na moda. Que não vai adiante porque acha que já sabe demais. Porque tivemos pais que nos deram coisas que eles não tiveram e isso nos tornou pessoas incapazes de correr atrás com verdadeira vontade. Uma geração que tem medo de amar. De amar... 

São estudos, não os afirmo. Apenas reproduzo a informação. Certezas que não se podem dar. A tristeza está em sentir que minha intuição reponde "sim, está correta". Tristeza em saber que existem pais dando "calmantes" aos seus filhos bebês. "Ah, ele é hiperativo". Não, senhora mãe, ele é criança. O cérebro que está em formação, já recebendo doses da loucura dos adultos... Que geração virá a seguir desta minha tão maluca? Esta que está crescendo com remédios? Esta em que o médico vê na criança sintomas de "depressão"? Diagnostica estripulias como doença? 

Daí eu lembro com saudade da época mais feliz da minha vida, a infância. A minha ainda foi sem remédios. Ney confirma: "Porque o passado me traz uma lembrança do tempo que eu era criança e o medo era motivo de choro desculpa pra um abraço ou um consolo''. 

Bom, li também uma pesquisa mostrando que pessoas que passam menos tempo no Facebook são mais felizes. Deve ser esse o motivo do meu desânimo. Devo estar usando meu tempo livre presa aqui. Que paradoxo, não? Eis que meu amigo Shuffle chama Cazuza de volta, na tentativa de me animar talvez com a mensagem: "Mas se você achar que eu tô derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados. Porque o tempo, o tempo não para".