terça-feira, 29 de setembro de 2015

Bronca pessoal coletiva

Da janela do meu quarto no primeiro andar eu vejo a lixeira na calçada. Toda hora, de dia ou de madrugada, pessoas aparecem para remexer o lixo. Alguns abrem os sacos em busca do que é reciclável. Separam caixas de leite, de molho, latas de achocolatado, de cerveja, potes de plástico de maionese. Tudo o que na nossa preguiça - tal qual nossos protestos de varanda, a gente não faz, mas poderia fazer e facilitar a vida deles, ou melhor, a nossa, já que o lixo é um problema de todos. Enfim.

No outro dia é comum os moradores reclamarem da bagunça que esses "maloqueiros", diga-se catadores, fazem nos resíduos que a gente acha que organiza, mas na verdade só se livra.

Tem aqueles que abrem os sacos e comem o que acham com a mesma voracidade que nós quando chega o prato na mesa do restaurante, a comida da mãe ou um lanche do McDonald's. 

Fazem da mão uma concha, apanham os restos e mandam para dentro. Tenho a impressão que eles não respiram para não sentirem o gosto. Para beber, balançam garrafas na esperança dos pingos ou aquele gole demorado dos potes no fim do danone. Acho que todo mundo já virou um iogurte e ficou esperando aquele último fiozinho que demora a cair, sabe? Pois é.

Cinco horas da manhã do último sábado eu ainda estava acordada. Um som típico e já sabia que era alguém na lixeira. Um homem de bicicleta vasculhava o que podia aproveitar. Fiquei com vontade de chama-lo: "Ei, moço, tá com fome? Quer alguma coisa?" Mas o medo de descer sozinha caso ele dissesse sim me calou no anonimato da janela.

Na verdade, não foi tanto o medo. Poderia entregar o lanche pelo portão sem que precisasse abri-lo. Mas havia uma preguiça meio óbvia de quem estava acordada ainda às 5 horas da manhã. Estava frio também... Ele foi embora.

Instantes depois, outro barulho. Desta vez era o jornal que minha mãe assina sendo jogado pelo entregador na garagem do prédio. Há dois finais de semana, algum vizinho cara de pau chega antes e o carrega como se o produto fosse dele. Depois, talvez para se livrar do que chamam de pecado, o deixa na porta de casa, à noite, após estar bem informado. Esperamos, qualquer hora, descobrir o ávido leitor.

Lembrei do fato e, para evitar, no mesmo instante levantei, vesti o roupão e desci, sem medo nem preguiça. Na volta, deixei o jornal em cima da mesa como agrado para minha mãe e voltei para a cama.

No momento em que a cabeça deitou no travesseiro, a famosa voz da consciência quis conversar: "Você não desce para ver se uma pessoa está com fome, mas desce para pegar o jornal? Claro, é interesse próprio. Você ainda não entendeu nada".

A vida sempre arruma um jeito de bater na sua cara, até que se aprenda a ser condizente com aquilo que se prega e acredita. Numa semana em que a foto de um bebê morto na praia nos clama por humanidade, usá-la com o próximo, daqui ou de lá, se torna inadiável. A falta dela na madrugada do último sábado ainda está doendo como deve mesmo doer a dor da consciência.

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