terça-feira, 29 de setembro de 2015

A gota

Era uma vez uma gota de chuva que não queria cair. Brava, ela observava as outras gotas caindo em direção à terra, mas ela não queria. Não entendia a necessidade da queda, sabia que cair doía.

A nuvem mãe veio em sua direção para saber o motivo da cara emburrada. Mesmo explicando seu medo, a mãe nuvem não amoleceu. De branca ficou cinza, pegou um raio e mandou na poltrona de névoa que a gota teimosa estava sentada.

Com o susto e sentindo-se só, a gota não teve outro caminho a não ser o da queda. A cada segundo ganhava mais velocidade. Enquanto passava pela densa tempestade, via outras gotas se despedindo dos familiares, felizes por saberem da importância do seu trabalho na terra. Os pais nuvens sabiam que logo estariam todos juntos novamente. O sábio fenômeno da evaporação era querido entre eles. Era ele quem trazia de volta as gotinhas para o céu.

Nenhuma das cenas bonitas fez a gota medrosa se animar, afinal ela estava caindo. Ao ver o chão cada vez mais perto se preparou para o impacto. Doeu.

Já no chão, começou a escorrer pela terra do campo onde havia caído. Percebeu muitas árvores doentes, uma se apoiando na outra. Algumas faziam da própria raiz, uma bengala para se manterem em pé, secas, sedentas por água. Foi aí que ela entendeu a necessidade da queda. Cair lhe deixava na mesma linha de quem sofria. Vendo de cima ela não enxergava lá embaixo.

Agora, dona de si, a gota escorria por todo campo. Aonde passava era bem-vinda. Flores e árvores se abriam para ela. Sementes brotavam em seu rastro. A poeira seca transformara-se em solo molhado, cheio de vida.

Para agradecer a vinda das gotas, ao fim da chuvarada, a terra produzia um perfume de chuva com grama molhada para que as gotas, ao voltar para o céu, mostrassem às nuvens a recompensa pelo bom trabalho.

A gota teimosa matou a sede de tanta mata, que evaporou mais cedo. Chegou ao céu com seu perfume de chuva. Sorriu para a mãe nuvem que grandiosa lhe aguardava. Entendeu porquê o céu era perfumado. A gota não tinha mais medo de cair.

Música e clipe que inspiraram este texto: https://www.youtube.com/watch?v=LVpuUKe9izI

Considerações matinais da rua:

1) Liberdade verdadeira é quando o telefone toca e você simplesmente não atende.
2) Bom mesmo é ser o dono da Coca-Cola. Independente de crise econômica, sempre haverá alguém tomando uma para refrescar depois de tanto andar entregando currículo.
3) Quem começa o dia com música é mais feliz.
4) Há não uma, mas duas certezas na vida. A primeira é morrer. A segunda é para aonde olha um grupo de homens ao ver passar uma mulher com calça de ginástica.

Maratona Cultural - Orquestra na Rua. Projeto do meu coração!

No meio dessa crise toda, de expressões cansadas e falta de esperança em dias melhores, o de hj foi como um calmante... Um respiro, uma amostra do que o ser humano pode ser e poderia ser mais vezes ao longo da vida. Um dia onde houve mais sorrisos que preocupações, mais pessoas sintonizadas no silêncio quando se ouve uma orquestra, mais conversas entre pessoas que não se conheciam, mas trocar uma ideia com quem estava ao lado era um jeito de dividir o momento. Mais mão no queixo e movimentos positivos e solitários com a cabeça dos senhores que, dessa forma, se expressavam em sinal de admiração. Mais palavras de força do que de desânimo: "Ei, você pode me explicar como funciona o projeto? Que coisa mais linda! Não parem!" Mais esperança que a falta dela. Um dia como hoje faz a gente voltar pra casa e pensar que a vida não é sempre boa, mas quando ela é, é demais! É uma recarga naquele pensamento que no fundo todos nutrimos do tal "mundo melhor". Afinal, quem sabe né? A @orquestranarua agradece àqueles que sempre nos ajudam, ao público presente e claro, aos nossos queridos músicos, dispostos e felizes por estarem ali. #aruaénoiz #orquestranarua

Crédito: Kennedy Lui

Sábia Terra

O homem tira, mas a natureza volta com sua imensa generosidade, mais uma vez: "... o que assombra os nutricionistas é sua composição como alimento. Pesquisadores concluíram que, comparada grama por grama com outros produtos, a moringa possui sete vezes mais vitamina C que a laranja, quatro vezes mais vitamina A que a cenoura, quatro vezes mais cálcio que o leite de vaca, três vezes mais ferro que o espinafre e três vezes mais potássio que a banana (...) Graças à moringa abundante e aos cereais e as leguminosas plantados nos terraços Konso, o fantasma da subnutrição afasta-se cada vez mais do sul da Etiópia. (...) ela oferece ainda mais um presente às comunidades rurais. Devido a uma composição particular dos óleos e das proteínas contidas nas sementes, quando trituradas e misturadas a uma água turva e não potável, uma reação extraordinária é produzida: a água fica limpa." Sábia Terra

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/viajologia/noticia/2015/06/moringa-arvore-magica-que-pode-acabar-com-fome-no-mundo.html

Rap é poesia!

"Então, fiquei sem saber o que fazer, tentando me lembrar de alguma poesia, alguma coisa, mas não tinha nada na cabeça. Falei para os moleques: “Vamos fazer uma cena de poesia”. Eles ficaram me olhando e falaram: “Ah, poesia é coisa de veado. Você tá tirando!”. Respondi que se ninguém gostasse eu iria sair fora e comecei a declamar: “O que é o que é, clara e salgada, cabe no olho, pesa uma tonelada, tem sabor de mar…”, e eles continuaram declamando. Eu interrompi e disse: “Ué, vocês não disseram que não gostavam de poesia?”. E eles responderam: “Mas isso aí é Racionais”. “E Racionais é o que?”, rebati. “Ah, Racionais é rap”, devolveram eles. E daí eu terminei: “E rap é o que?”. Eles ficaram em silêncio e eu continuei: “Rap não é ritmo, amor e poesia? Se eu colocar um ritmo em uma poesia não pode virar um rap? Oh, vou fazer outro rap pra vocês: [começa a cantar] ‘Vocês que atravancam meu caminho, ah, passarão, eu passarinho’”. Os caras ficaram olhando e falaram: “Pô, legal esse rap aí. Mas a gente não conhece”. E eu respondi: “Isso é Mário Quintana”. Caraio  http://brasileiros.com.br/2015/06/fundacao-e-tudo-menos-casa-afirma-rapper-renan-inquerito/

Cabeça grande, cabeça pequena.

Na farmácia com a mãe: 
- Boa noite, posso ajudar?
- Oi, pode sim. Tô procurando escova de dentes.
- Pois não, por aqui. Você tem preferência por alguma marca?
- Ah, gosto da Oral B ou Jonhson. Mas com cabeça 30, pequena.
- Deixa eu procurar.
Chega minha mãe, que até então estava em outro canto da farmácia.
- Que foi filha?
- Estamos procurando uma com cabeça 30.
- Mas por que? Você gosta de cabeça pequena? Eu prefiro cabeça grande.
- Ah... Você gosta de cabeça grande, mãe? (já rindo)
- Filha!
Eis que a vendedora responde:
- Os dentistas recomendam as de cabeça pequena porque chegam mais no fundo da boca, limpam melhor.
Neste momento, caímos na risada. A vendedora séria e profissional, pergunta:
- Aqui, achei uma cabeça 30. Mais alguma coisa?
- Só isso, obrigada! Viu mãe, cabeça pequena é melhor. hahahahhah
- Eu só uso a grande.
E vamos embora rindo!
Um salve à amizade entre pais e filhos, à idiotice da malícia de 15 anos e lógico, à "família tradicional brasileira"!

Palavra cantada

Ouvir rap num ônibus lotado às 7h da manhã faz as letras ganharem todo sentido. E por mais que essa não seja a sua rotina diária, vale a pena escutar. 

O rap desenha, faz praticamente um retrato para quem ainda não entendeu por que existem pessoas que são contra a redução da maioridade penal como solução da violência e todas as bandeiras de justiça, exclusão, oportunidades e causas varridas para debaixo do tapete. 

Ele faz a ponte pra quem não conhece o lado de lá e basta ser um pouco sensível e humano para que essas letras façam sentido pra vc tb. O rap são as matérias que não saem nos jornais.

Se ela falou, tá falado!

https://jornalismoliterarioblog.wordpress.com/2015/07/27/10-livros-que-todo-jornalista-deve-ler-por-eliane-brum/

Um texto que não permite extrair só um trecho.

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,por-cima--nao-acima,1748678#

Amai ao próximo como a ti mesmo

”Como repórter, uma das cenas que mais me dilacera e que se repete quase toda vez que piso pela primeira vez na casa de alguém que mora na periferia é quando me estendem sua carteira de trabalho para provar que não são bandidos. Homens e mulheres sofridos, assinalados pela vida dura, que sabem que já nasceram sob suspeição porque são pobres, e mais suspeitos tornam-se se ainda por cima forem também negros. E eu, branca e jornalista, sou decodificada como uma autoridade a quem também é preciso estender a carteira de trabalho. Recuso, digo que não precisa, repito que não devem. Insistem. Eu pego, morro um pouco. Neste gesto, toda a falência do Brasil é consumada.“Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar.”A principal linha de investigação do massacre de 13 de agosto aponta para a vingança, por parte de policiais militares, pela morte de um colega durante um assalto, ocorrido na semana anterior, na mesma região. Na maioria das demais chacinas, também há suspeita de envolvimento de policiais. O 13 de agosto prova, mais uma vez, que as periferias paulistas vivem sob estado de terror, provocado por uma guerra não declarada. Nela, tombam os mais pobres, a maioria deles negros." (BRUM, 2015) Em outro texto.

"A repressão a suburbanos e favelados não é novidade no município. Ano sim, ano também, ao primeiro sinal de verão, pipoca o medo de arrastão e as autoridades propõem “higienizar” os coletivos que vêm da Zona Norte. O governador apoiou a polícia: “Quantos arrastões foram praticados por alguns desses menores?”. O secretário de Segurança arrematou: “Você tem um ônibus de adolescentes que não pagaram a passagem, que não tem o que comer, com fome, e você acha que eles irão voltar como para casa?”. 

Já este trecho é desta coluna. Para mim interligados. E com a violência que os tratamos seremos tratados nesta incapacidade de tornar "eles" em "nós". "Poético, isso só dá certo no papel". Vai ver que é porquê a gente nunca tentou de verdade.



Antonio Maria

...Vem do sofá para a poltrona e senta sobre as pernas. Enrosca-se-lhe no pescoço. Ele a enlaça e lhe sente o cheiro e os seios.
- Deixe eu quietinha - pede-lhe ela. Depois: Só em você fico assim. Depois: Só tenho uma casa, que é esta. Depois: As outras pessoas nem são gente. Depois: Que é isto aqui no seu ombro? (Ele responde que deve ter sido mordida de mosquito.) Depois: Me bota na cama, assim como eu estou.
(...) Deita-a. Deita-se ao lado. Ela vira-lhe as costas e pede-lhe que a abrace. Ele pensa em como fica cômodo toda vez que a abraça assim. São poucas as pessoas a quem a gente se abraça e fica cômodo. As pessoas que se amam são confortáveis entre si. Ele ia explicando quanto o abraço dos dois dava certo, quando ela o interrompeu, dizendo que estava sentindo e pensando a mesma coisa.
(...) Na sala, a canção de Aznavour se repetindo. (...) Sorri. Ajeita mais o corpo no corpo dele. Segue um pouco a melodia de pleut, de boca fechada.
- Você tira a letra para mim?
- Tiro.
- Depois traduz?
- Traduzo.

Trechos de "Segredo do apartamento 912". Do livro As Crônicas de Antônio Maria. Maravilhoso. Quando crescer, quero escrever assim!

Bronca pessoal coletiva

Da janela do meu quarto no primeiro andar eu vejo a lixeira na calçada. Toda hora, de dia ou de madrugada, pessoas aparecem para remexer o lixo. Alguns abrem os sacos em busca do que é reciclável. Separam caixas de leite, de molho, latas de achocolatado, de cerveja, potes de plástico de maionese. Tudo o que na nossa preguiça - tal qual nossos protestos de varanda, a gente não faz, mas poderia fazer e facilitar a vida deles, ou melhor, a nossa, já que o lixo é um problema de todos. Enfim.

No outro dia é comum os moradores reclamarem da bagunça que esses "maloqueiros", diga-se catadores, fazem nos resíduos que a gente acha que organiza, mas na verdade só se livra.

Tem aqueles que abrem os sacos e comem o que acham com a mesma voracidade que nós quando chega o prato na mesa do restaurante, a comida da mãe ou um lanche do McDonald's. 

Fazem da mão uma concha, apanham os restos e mandam para dentro. Tenho a impressão que eles não respiram para não sentirem o gosto. Para beber, balançam garrafas na esperança dos pingos ou aquele gole demorado dos potes no fim do danone. Acho que todo mundo já virou um iogurte e ficou esperando aquele último fiozinho que demora a cair, sabe? Pois é.

Cinco horas da manhã do último sábado eu ainda estava acordada. Um som típico e já sabia que era alguém na lixeira. Um homem de bicicleta vasculhava o que podia aproveitar. Fiquei com vontade de chama-lo: "Ei, moço, tá com fome? Quer alguma coisa?" Mas o medo de descer sozinha caso ele dissesse sim me calou no anonimato da janela.

Na verdade, não foi tanto o medo. Poderia entregar o lanche pelo portão sem que precisasse abri-lo. Mas havia uma preguiça meio óbvia de quem estava acordada ainda às 5 horas da manhã. Estava frio também... Ele foi embora.

Instantes depois, outro barulho. Desta vez era o jornal que minha mãe assina sendo jogado pelo entregador na garagem do prédio. Há dois finais de semana, algum vizinho cara de pau chega antes e o carrega como se o produto fosse dele. Depois, talvez para se livrar do que chamam de pecado, o deixa na porta de casa, à noite, após estar bem informado. Esperamos, qualquer hora, descobrir o ávido leitor.

Lembrei do fato e, para evitar, no mesmo instante levantei, vesti o roupão e desci, sem medo nem preguiça. Na volta, deixei o jornal em cima da mesa como agrado para minha mãe e voltei para a cama.

No momento em que a cabeça deitou no travesseiro, a famosa voz da consciência quis conversar: "Você não desce para ver se uma pessoa está com fome, mas desce para pegar o jornal? Claro, é interesse próprio. Você ainda não entendeu nada".

A vida sempre arruma um jeito de bater na sua cara, até que se aprenda a ser condizente com aquilo que se prega e acredita. Numa semana em que a foto de um bebê morto na praia nos clama por humanidade, usá-la com o próximo, daqui ou de lá, se torna inadiável. A falta dela na madrugada do último sábado ainda está doendo como deve mesmo doer a dor da consciência.

Não corro mais

Aceitei ser testemunha de um casamento desconhecido no cartório, hoje. A noiva agradeceu, ficou feliz. Ninguém queria. Todos tinham pressa e só. 
Na lotérica, dia desses, "aguardem, por favor, 15 minutos pois o sistema está parado". Quinze minutos. Quase todos reclamaram: "Brasil". Lá fora estava um dia bonito para ver passar 15 minutos no 3º mundo, mas ninguém tinha tempo.
Só é permitido ter tempo em feriados. 
Acho que descobri que eu não corro mais.
Não corro mais para pegar ônibus.
Ando mais pela calçada da praia do que dos prédios, agora. 
Vejo as folhas das árvores passando por mim enquanto ando olhando para cima. O jeito como a luz passa por elas. E é bem bonito.
Ler coisas faz isso. Talvez ficar mais velho também. Não é tornar-se poético. É só a visão dos olhos "de ver" que vai mudando. E talvez seja exatamente o tempo que faz isso. Todos precisam (ou precisavam) tê-lo. 
Por isso eu não corro mais. 
Há problema nisso, ainda. 
Portanto, ocasionalmente, devo voltar a correr. Mas, com a graça do tempo que o tempo me deu, sem mais tropeçar no meu próprio pé.

Geração tecnológica

Às vezes você escuta uma banda, se apaixona ao primeiro acorde da música, mas não sabe a discografia completa, todas as brigas marcantes ou quem faz os arranjos. E tudo bem, sabe?

Às vezes você ama massa, caldeirada ou purê com carne moída, mas não sabe todos os temperos presentes nem o tempo de preparo para chegar àquele ponto. E tudo bem, também.

Às vezes você simpatiza com alguém, mas nunca conversou muito com ela. E tudo bem, mais uma vez. 

Tem coisa que a gente sente e pronto. 

Essa era da informação deixa tudo muito frenético. Virou absurdo desconhecer. Às vezes a gente não sabe mesmo e tudo bem em não saber, sabe? Aprender ainda é bom. Take it easy, geração tecnológica...