quinta-feira, 7 de maio de 2015

Indiferença

2h10 da madrugada desta quinta-feira. Estava deitada na cama sem sono quando ouvi um forte barulho. Abri uma fresta na janela, mas não enxerguei nada. De repente, o barulho mais uma vez. Vejo um Fusca azul balançando e a porta do lado do motorista abrindo. O carro está parado quase na esquina da rua onde moro, debaixo de uma árvore. De longe não enxergo direito o que está acontecendo, mas vejo a sombra de uma pessoa entrando no veículo abaixada e escondida. "É roubo". 

Pego o celular para ligar para a polícia, mas ao mesmo tempo uma curiosidade me pede um pouco mais de tempo. Não consigo ver o que está acontecendo lá dentro, apenas a sombra de alguém. Com todo respeito aos policiais militares, mas infelizmente, pelo jeito como abordam os cidadãos, eu evito ao máximo precisar do serviço deles. 

Passaram-se cinco minutos, o carro está quieto e nada da pessoa. Começo a achar estranho porque se fosse um assalto, este bandido era muito lerdo. Eis o questionamento que se apodera de mim: "ligar ou não para a Polícia Militar?". Penso que talvez possa ser o dono do carro e bêbado, perdeu a chave, arrombou a porta e agora dorme. Depois que deve ser um ladrão em começo de carreira, já que o tempo passa e nada do carro ligar. 

Em meio aos pensamentos, outro estalo e o vidro da frente se abre um pouco. Lembro da história de um conhecido que teve seu amado Fusca roubado na porta de casa, também durante a madrugada. O quanto aquilo o entristeceu pois havia gasto além de dinheiro para as peças originais, tempo e dedicação ao veículo querido. A lembrança me fez tomar a decisão: ligar 190. 

- Emergência Polícia Militar.
- Acho que estão roubando um carro na minha rua.
- Por que a senhora acha isto?
- Porque eu estava deitada, ouvi um barulho e pela janela vi alguém entrando abaixado num Fusca...
- Fusca? É furto com certeza! Roubam Fusca direto, senhora. Endereço, cidade?
Passei os detalhes.
- Uma viatura está a caminho. Obrigada por fazer a sua parte. Boa noite.

Pela janela, continuo a espreitar, nervosa e confusa com o que tinha feito. Quem dera eu acreditar que ligar para a polícia fosse fazer a "minha parte". Se de repente eles atiram na pessoa? Serei responsável pela morte de alguém. Nunca vou me perdoar. Se é só um bêbado? Se é alguém realmente mau? Deveria estar dormindo, daí não veria nada disso!" Um milhão de pensamentos voam sobre minha cabeça. Luzes de sirene iluminam o meu quarto. Dois policiais descem do veículo com a arma em punho, olham pela janela e gritam:

- Ae camarada, o carro é seu, o carro é seu? Não? Como é que você entrou aí? Desce, desce! Desce porra, que demora é essa?
Sai desesperado e com as mãos na cabeça um homem alto, forte e descalço.
- Não sou ladrão não, senhor. Não sou...
- É não? Como você me explica essa porta arrebentada? Encosta no muro. Não mandei tirar as mãos da cabeça. Mãos na cabeça, caralho! 
O homem, de costas para o muro responde em sins frenéticos com a cabeça.
- Nome, pai, mãe? Se você tiver passagem...
- Não tenho não senhor... desculpa! É que...
Sinal para se calar. O policial entra na viatura para checar os dados enquanto o outro continua com a arma apontada para ele. Consegui ouvir o nome da mãe: Maria Aparecida, como a minha. E o ano de seu nascimento: 1970, ou 45 anos de idade. 
De dentro da viatura, fala o PM:
- Sai fora cara! Libera ele, X. Tá limpo esse aí.
- Obrigado, eu não sou ladrão não. Posso pegar meu sapato e minha mochila? Tá dentro do carro. 
O PM faz que sim com a cabeça. Ele pega suas coisas e vai embora. Vira a esquina em passos largos, com o sapato nas mãos e a mochila num ombro só.
Antes de partir, os policiais fazem uma vistoria no Fusca
- Tá abandonado essa porra. Ó o estado disso...

Agradeci por eles não terem batido no suposto ladrão que era só um sem teto. E isso não tem nada a ver com bondade, apenas não acredito que essa seja a solução para quem já apanha da vida e de maneira bem mais dolorida. Deitei imaginando para onde aquele cara iria. Talvez ele tivesse invadido o carro para dormir, porque na rua estava frio. Talvez já tivesse notado que aquele Fusquinha velho estava abandonado e por isso decidiu arrombar a porta. Talvez ali fosse um novo abrigo para ele, quente e protegido, mas eu estraguei a moradia no comodismo da minha janela. Me senti protestante de panelas.

Não reparei naquele carro abandonado na rua de casa. Claro que não. Desde quando o ser humano repara no abandono alheio ou pessoas coisificadas? Como são falhas as nossas relações. Eu não notei porque tenho a minha casa, a minha cama com edredom.O homem já tinha percebido a solidão daquele Fusca. Era tão abandonado quanto ele. A gente sempre se identifica com os nossos semelhantes.

Ainda espiei mais vezes para ver se de repente ele voltava. Ficaria com a consciência mais tranquila sabendo que ele estava dormindo ali. Mas ele não voltou. O carro está lá. Debaixo da árvore da esquina. E há duas semanas, quando tirei a foto abaixo, ele já estava. E eu não reparei. Quanta apatia ainda vive em nós. 

Eu nunca sei a melhor maneira de ajudar. Impediria um roubo caso fosse. Pioraria a vida de quem já não vive. Quem assalta, quem é assaltado, a indiferença. Ainda não sei quem é vítima. 

O Fusca abandonado. A foto marca duas semanas, mas não sei há quanto tempo está aí.





Um comentário:

  1. Vamos olhar mais para os lados, fazendo isso, nosso mundo se expande! Muito bom Vanessa.

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