Me chamo José. José é nome de gente como eu. Alguns se chamam João e geralmente o sobrenome traz um Silva. Talvez seja cultural, mas é comum entre nós e vocês já devem ter percebido. Morei num lugar uma vez que tinha tanto Silva que nos chamávamos por números: Silva 1, Silva 2, Silva 3.
Eu sou morador da rua, da rua mesmo. Gosto dessa coisa de não ter lugar fixo porquê as pernas foram feitas para andar, os olhos para verem coisas diferentes em lugares diferentes e a mente funciona melhor quando pode adormecer tendo o céu como teto.
Teve um dia que acordei na madrugada por causa do cheiro de tinta. Eram uns meninos quietos colocando cor no muro cinza. Um deles escreveu em azul: “Em casa de menino de rua o último a dormir apaga a lua”. Dei uma risada que saiu parecendo espirro e um dos moleques mandou um salve pedindo desculpa por ter me acordado. Eu nem fiquei chateado em ter o sono perdido porque dormir na rua dá essa liberdade de acordar para ver as coisas que poucas pessoas veem.
Eu gosto do dia também, mas é de noite que as belezas do céu mandam seus recados e já vi cada um que fico com pena de imaginar que poucos devem ter visto. Lembro uma vez que tava deitado na Sé, era verão e não sei se devido ao uso de milhões de ares-condicionados, apagão!
Nunca vi tanta estrela no céu de São Paulo como naquela meia hora sem luz. O calor deixa as pessoas agitadas, irritadas, barulhentas e aquela noite estava turbulenta na praça. Sabe que depois de uns cinco minutos no escuro as vozes foram baixando, a agitação foi dando lugar pro sossego e os vizinhos de rua relaxaram olhando para aquele céu estrelado.
Contei na vida 253 estrelas cadentes e em todas elas fiz pedido. Coincidência ou não, todas as vezes que via uma, tinha refeição farta no dia seguinte. Acho que eram elas respondendo meus desejos. Também percebi que elas caiam mais no verão. Quem mora na rua adora o calor. Dá para tomar banho em fonte, secar roupas e principalmente, dormir com brisa boa.
O frio castiga a gente. Eu particularmente nunca gostei do inverno. Para quem é só, ele deixa tudo mais solitário ainda. Se no verão já é difícil esse povo apressado olhar pra nós, imagina no frio, onde todo mundo anda mais rápido, com as mãos no bolso, encolhido e olhando pra baixo para esconder o nariz do ar gelado... É doído pra alma e pro corpo. Pro corpo é mais porque dá dor física.
Noite dessas eu sofri um pouco mais. Deitei no papelão, mas tava molhado por causa da chuva. No dia anterior a guarda passou pegando os cobertores e só consegui correr levando um. O lado bom é que na corrida esquentei um pouco e o frio deu um tempo.
De manhã fiquei no sol o tempo todo tentando armazenar o calor dentro da coberta que me sobrou. Nesta noite específica, tudo que eu lembrava quando os dedos dos pés começaram a endurecer era a sensação do sol esquentando a testa, depois a nuca, depois a blusa até dar quentura suficiente pra tira-la e ficar só de manga curta. É uma boa sensação!
Antes do meu coração parar, eu só sentia calor dentro do peito. Acho que era minha imaginação em forma de lembrança da manhã de poucas horas atrás, antes dessa noite gelada em que eu fui embora daí pra melhor. E é pra melhor mesmo viu moçada, porque tô escrevendo isso sentado advinha aonde: no sol. Não exatamente no astro rei, mas num jardim onde ele pega.
Vou ver qual é da rua universal agora. Tá tudo novo e ainda tô observando pra entender como é que as coisas funcionam por aqui. Já não sinto mais a dor da temperatura que me levou quando chegou aos 7ºC, ontem, na Avenida Paulista. Só lembro de me sentir ficando frio, muito frio, só não mais frio do que a matéria “leitura rápida” que saiu no jornal contando sobre a minha partida: 5 linhas.

Seu texto toca bastante o coração. Humaniza o olhar do leitor, acostumado a desumanizar a quem não é igual, a quem prefere ignorar, a quem prefere jamais olhar nos olhos... e sim, eu me coloco nesse grupo, não é simples sair do automático. Alguns diriam "seu texto humaniza o personagem"... Meu deus, é muita frieza de não perceber que desumanos somos nós a andar como zumbis de fone de ouvido e WhatsApp na mão, olhos pra baixo, mas nem chegam ao chão, já que a maquininha domina toda a nossa atenção.
ResponderExcluirValeu pelo texto! Cheguei aqui procurando informações sobre a morte de Douglas Martins, 17 anos, que fez 3 anos e voltou a ser assunto na Folha de hoje. Lembro do tanto que a última frase do menino me tocou na época. Bem, é isso. Parabéns pelo texto.
Sensível, tocante, inspirador e mais do que tudo... desesperador. Lindo texto. Não pare.
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