terça-feira, 17 de maio de 2016

Um texto cansado

Durante muitos anos, eu defendi que era questão de tempo para as pessoas enxergarem a administração de um país como algo mais profundo. Era otimista. Não sou Doutora no assunto, mas me apeguei a um hábito que se chama ler. É uma prática que talvez leve a tristeza e tenho comigo que é por isso que a maioria não o faz. No fundo a gente sabe que o saber pede mudança e é dolorido mudar, ou mais ainda, assumir. Dói porque demora para acontecer tudo aquilo que por incrível que pareça, está atrasado (ainda) na espécie humana. Quando aos 20 e poucos anos mudei minha minha visão sobre Direitos Humanos ser um cassetete, vi a força que um texto pode ter. A culpa da minha mudança de postura é toda da força das palavras e da vivência de pessoas que decidiram falar sobre aquilo que elas viram. Documentários, vídeos, filmes, qualquer coisa nesse sentido carrega esse poder. Passei a acreditar plenamente que com a internet e tantos canais de imprensa ganhando voz com um jornalismo amplo e sem rabo preso, a população iria então começar a consumir um conteúdo mais idôneo e desta forma, se conscientizaria mais facilmente de que uma peça que se modifique no jogo político, muda toda a sua estrutura. Estava enganada. Muita gente cansou de explicar os motivos de ser contra o impeachment, abrangeu, usou de argumentos sólidos, de exemplos tirados da história desta e de outras nações, da importância da luta das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos pobres, da cultura como ferramenta educacional, dos direitos humanos além dos argumentos já cansados. Acompanhei o engajamento de muita gente tentando de todas as formas, alertar o quanto se perde quando a democracia é derrubada. Artigos, colunas, editoriais, entrevistas, mídia gringa. Nada disso foi mais forte que o bombardeio da grande imprensa. Entendo que a mudança de comportamento político na sociedade brasileira é coisa nova. Penso, ainda com otimismo, que discutir política como se discute hoje trará bons frutos, mas sinceramente não acreditava que seria possível ver em pleno 2016 o que está acontecendo. Isso tira de mim toda a fantasia de que o povo brasileiro é "lindo". Não é, não. É um povo preguiçoso, egoísta, preconceituoso e resultado de todas as vezes que se para de ler um texto logo no primeiro parágrafo usando da velha premissa: isso é texto de petista, petralha, esquerda, socialista, sonhador. Pois é, muita gente não é nem nunca foi o que a preguiça dessas opiniões julgou. São apenas pessoas tentando aprofundar questões. Não que sejam mais inteligentes, mas talvez saibam mais daquele assunto do que nós. Tão logo o novo presidente assumiu e já começamos a colher tudo aquilo que uma boa parte dessas pessoas tentou alertar desesperadamente, sem sucesso. Quanta coisa eu li que já começavam com a frase "não sou petista, não apoio o governo, mas..." Isso sempre me soou como uma maneira desesperada de pedir "Por favor, leia isso. Dê uma chance". Não adiantou. Faz um tempo que minhas ilusões de brasileira feliz andam saindo uma a uma pela porta. Não é de todo ruim, mas é triste. Triste por achar que o que penso junto de muitas pessoas não são ilusões, mas entram para esta categoria simplesmente pela falta de vontade de uma sociedade que já possui ferramentas para se libertar, mas não faz questão. Retirei alguns trechos do documentário Requiem for the American Dream que embasam muito bem a opinião de quem é considerado sonhador, quando na verdade luta por uma vida mais justa em sociedade, como forma principalmente de se diminuir a violência tanto física quanto moral. A crise da democracia: "As empresas estavam perdendo o controle sobre a sociedade e algo tinha que ser feito para combater essas forças"... "Ficaram chocados com a tendência democratizante dos anos 60 e precisavam agir contra aquilo. Eles achavam que havia um "excesso de democracia" se desenvolvendo. Parcelas antes passivas e obedientes da população, estavam começando a se organizar e tentar entrar na arena política e eles disseram: "Isso impõe muita pressão sobre o Estado. Não há como lidar com toda essa pressão." Então eles precisam voltar a passividade e se despolitizarem"... Princípio número 5: Atacar a solidariedade "A solidariedade é muito perigosa. Do ponto de vista dos mestres, você só precisa se preocupar consigo, não com os outros, o que não tem problema para os ricos e poderosos, mas é devastador para o restante. Tem havido vários esforços para retirar essas emoções humanas básicas da cabeça das pessoas. E vemos isso hoje na formação de políticas"... "Você quer destruir um sistema? Tire os fundos dele. Não funcionará. Todos ficarão bravos. Vão querer outra coisa. É uma técnica padrão para privatizar um sistema. Vemos isso no ataque às escolas públicas. As escolas públicas são baseadas no princípio da solidariedade. Eu não tenho mais filhos na escola. Já cresceram, mas o princípio da solidariedade diz: "Eu pago os impostos para que as crianças do outro lado da rua possam ir à escola." Essa é uma emoção humana normal, mas tem que tirar isso da cabeça das pessoas, então: "Eu não tenho filhos na escola. Por que devo pagar impostos? Privatize." Nos anos 50, a sociedade era bem mais pobre que hoje em dia, mas, no entanto, conseguia arcar com mais educação de massa gratuita. Hoje uma sociedade bem mais rica alega que não tem recursos para isso." Bom, em nenhum momento se faz aqui guerra contra o dinheiro ou quem o possui, apenas um convite a pensar que os detentores do poder não estão, por problemas de caráter mesmo e hierarquias de sempre, a fim de dividir o que possuem e tornar o povo hábil de lutar por aquilo que lhe é de direito. E se você nasceu bem, use da empatia e se imagine no lugar de quem não teve a mesma sorte. Não é lição de igreja, é só humanidade. 

O governo do PT foi marcado por muitos escândalos, mas também por uma redistribuição de renda que muitos minimizam ao chamar de vagabundos mamando nas tetas do governo. A redução da pobreza será sentida quando começarmos a sermos atendidos por médicos com cara de "tia ou tio do café", como apequena o imbecil Danilo Gentili, mas serão estes da Silva e de Deus os detentores do conhecimento há tanto tempo negado. É um fruto sim. 

Na TV, voltaremos a ver coberturas da correria para comprar presentes nas datas especiais. Sobre política, nada demais. Sim, tô me repetindo... O povo lutou, o povo conseguiu e assim voltaremos a viver melhores porque o que os olhos não vêem, o coração não sente e a gente prefere assim. Brigar dá trabalho. 

Triste é saber de tantas sugestões oferecidas para fugir do impeachment, mas quem venceu foi o retrocesso. Fim do MinC. O Ministro nomeado para a agricultura derrubou a PEC do trabalho escravo, que determina o confisco de propriedades flagradas nessas condições. Charada: e nosso Beto Mansur, votou contra ou a favor? Rá! "É só o começo do fim da corrupção. Estamos limpando o Brasil"...

Há um cansaço na alma de todo brasileiro que já enxergou isso e tentou fazer a sua parte para que a democracia não sofresse. Mais uma vez perdemos. Alguns disseram "chega, desisto". Eu também, mas não sei explicar aquela coisa dentro da cabeça que insiste em nos manter lutando. E a gente vai continuar, talvez por burrice de achar que a minoria um dia vire maioria. Ou talvez porque tenha que ser assim, já que continuamos a acreditar na evolução da espécie.

Para encerrar feliz, no Netflix tem o documentário.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Crônica de doido.

O ônibus da Ponta da Praia para São Vicente em uma segunda-feira é sempre tranquilo às 8h30 da manhã. O trânsito é no sentido inverso, assim como o barulho das pessoas matinais, mas hoje foi diferente.

Logo no canal 5, uma senhora esqueceu de dar o sinal para avisar o motorista que iria descer no próximo ponto. Logicamente, o ônibus seguiu, parando no susto depois dos gritos da dona ao condutor, como se ele tivesse culpa do esquecimento dela. Deu para ouvir a respiração bufante do motorista após a bronca desmerecida. Viagem que segue.

No ponto seguinte, entra um senhor velhinho, mas bem velhinho mesmo, carregando nas orelhas dois grandes aparelhos auditivos. Ao lado dele, um homem parecia ignorar o que o velho lhe dizia em alto e bom som, mas de fato indecifrável pela dificuldade da fala de quem é banguela.

O senhor se encaminhou para um banco localizado mais ao meio do veículo e se calou. O homem sentou ao seu lado, depois na poltrona da frente, depois na poltrona dos fundos, depois naquela mais alta de todas e finalmente voltou a se sentar ao lado do velho. Pensei várias coisas: devia ter algum tipo de deficiência mental, podia ser um homem louco ou apenas alguém que gosta de passear pelas cadeiras vazias dos ônibus, ora! Por coincidência ou não, percebi no Celta parado no semáforo, o adesivo "de perto ninguém é normal".

Próximo ao canal 3, canal de gente rica da cidade, adentrou o espaço o oposto do público dali. Um casal que visivelmente fazia uso da droga que deixou a Grazi feia naquela série de TV, entrou, sentou e ficou. O rapaz incomodado pelo fato da sua senhora ter sentado longe dele, tratou de abrir um sorriso quando vagou o espaço ao seu lado. "Senta aqui, nêga".

Os dois eram do tipo tartaruga, carregavam a casa nas costas, dentro da mochila. A dela pequena e vermelha, a dele preta com um zíper quebrado. Muito magros, coxas quase da finura dos punhos, manchas pela pele e pelos dentes do sorriso que seguiu aberto, principalmente no rosto do moço que estava feliz por levar sua donzela para conhecer a "divisa".

_Motô, esse ônibus passa na divisa, não passa?
_ Passa.
_ Vai conhecer a divisa, nêga!

Ela era mais silenciosa, tirou o boné da cabeça, arrumou os cabelos oleosos, como se quisesse melhorar sua aparência em receber tamanho convite. Ele berrava na janela. Fazia sinal de joinha ao povo da rua e aqueles que retornavam o cumprimento, ouviam um sonoro “Ae, esse aí é gente boa”!

O rosto dos ocupantes 'normais' foi mudando de mau humor matinal para péssimo humor matinal, rapidamente. É um bom exercício observar a tolerância das pessoas. Enfim... não é sobre os de comportamento aceitável pela sociedade que se trata este relato.

O casal desceu na esperada divisa. Imaginei que iriam atravessar para o lado da praia, mas não. Seguiram em direção ao Orquidário, local conhecido como a Cracolândia santista. Bom, talvez foram por ali para se hospedar em alguma pousada daquelas que cobram R$ 10 a diária, deixar em segurança suas preciosas mochilas-casa, a sacola plástica cheia de bananas e então seguirem para o mar, afinal "Só Deus pode me julgar" - já dizia Mv Bill e a bíblia dos fervorosos, geralmente os mais esquecidos quando lhes convêm.

Já em São Vicente, mais um ser barulhento. Ao lado da mãe, um menino que não parava de cantar. Ficava de joelho no banco, olhava para trás encarando com cara bonita todas aquelas pessoas com caras feias. A infância ainda permite cantar dentro do ônibus sem ser cobrado do bom senso, ou até mesmo sentar em todas as cadeiras sem parecer louco, como julguei o moço do início desta história. Falando nele, ao dar sinal para descer, notei o olhar dele me seguir. Da mesma forma, olhou para o lugar onde eu ocupava, agora vazio. E o que ele fez? Pois é.

O ponto que desço é em frente ao Banco do Brasil, onde também tenho conta. Entrei para verificar meu saldo. Saí de lá doida da vida. O mundo dá voltas.