Era o dia da exumação do corpo do meu pai. Dia animador (né) para levantar da cama, tomar um banho, um café e seguir para o cemitério ver o que sobrou do que até então, tinha sido ele. Eu e minhas irmãs ignoramos este dia. Não nos interessou acompanhar um processo que considerávamos mórbido. Não era esta a lembrança que queríamos ter do nosso pai, até porque não combinava nem um pouco com ele esse tipo de coisa.
Mas, minha mãe estava ali, firme e forte no propósito de ver o marido de volta a sua origem: "do pó viemos, ao pó voltaremos". A cara fechada, um bico desse tamanho, a energia pesada e um mau humor contagiante. Nem parecia minha mãe.
Quem ligou para dar a notícia da exumação foi minha avó. Havia morrido um parente não muito próximo da linhagem Pimentel, cujo cadáver seria enterrado na campa da família. Por falta de espaço, o "descanse em paz" do meu pai foi interrompido.
Minha mãe seguiu para este ritual com cara de poucos amigos. Ver o homem que amou, o pai das suas filhas, o Guizão cheio de vida se limitar a ossos, não lhe fazia bem. Ela representava, literalmente, aquele personagem que anda com uma nuvem pesada, cheia de raios na cabeça. Se tivesse uma cor, seria cinza.
Para piorar a situação, chegou atrasada no cemitério. O caixão já tinha sido aberto e o esqueleto dele, transportado. Só o que viu foi meus avós, pais do meu pai, um ao lado do outro, em silêncio e chorosos olhando para um saco plástico preto. No sepulcro, homens preparavam o terreno para o próximo morador.
_ Por que não me esperaram?
_ Não dava, Cida. Eles têm horário e não podíamos atrasá-los.
O mau humor da minha mãe se transformou em raiva. Como não a esperaram para acompanhar a exumação do próprio marido? Meus avós, percebendo a inconformidade dela sem que nada pudessem fazer, se despediram com um abraço e seguiram de volta para casa, carregando e dividindo aquela dor.
Não sei ao certo o que sentiram ao ver o filho assim. Nunca conversamos sobre esta experiência e na época eu fugia desses assuntos. Talvez, anos depois, eu viesse a perguntar, mas não deu tempo. Os dois já estão agora na companhia do filho. Devem estar felizes.
Não sei ao certo o que sentiram ao ver o filho assim. Nunca conversamos sobre esta experiência e na época eu fugia desses assuntos. Talvez, anos depois, eu viesse a perguntar, mas não deu tempo. Os dois já estão agora na companhia do filho. Devem estar felizes.
* * *
Para dar continuidade ao processo, alguém da família tinha que permanecer com os coveiros até o final. Minha mãe ficou. Pediu para ver o marido. Em silêncio, lhe apontaram o saco preto. Na dureza da informação, caminhou até ele. Abriu. Ali estava Aguinaldo. O esqueleto daquele magrelo alto estava mais magro do que nunca. Ela se pôs a chorar. Como pode no fim, a gente se resumir àquilo? Eis que ressurge em uma lembrança inadequada ao momento, o falecido marido...
* * *
Meu pai era amante da música. Um dos passeios preferidos dele era ir à loja Ferrs, no Gonzaga, comprar cd's. Voltava sempre com novidades. A dupla de música eletrônica Daft Punk estava entre elas.
Around The World foi lançado em março de 1997, dois anos antes de sua morte. Arrebatou meu pai! E palhaço que era, ficava imitando no meio da sala a coreografia que um bando de caveiras, múmias e figuras estranhas faziam no videoclipe. Fora o humor negro que nos fazia sentir culpa por dar risada das piadas que não poderiam ser piadas.
Around The World foi lançado em março de 1997, dois anos antes de sua morte. Arrebatou meu pai! E palhaço que era, ficava imitando no meio da sala a coreografia que um bando de caveiras, múmias e figuras estranhas faziam no videoclipe. Fora o humor negro que nos fazia sentir culpa por dar risada das piadas que não poderiam ser piadas.
Mas, a cena é o cemitério. Ao lado do saco preto, envolta numa energia mais escura que a cor do saco, estava minha mãe. Imersa em pensamentos tristes que aquela cena lhe trazia à mente, permanecia séria e endurecida, bravejando mentalmente contra tudo e todos.
Quando ela conta a lembrança que teve num momento tido como inadequado, não tem como: imagino sempre meu pai ao lado dela, com "cara de engraçado", cheio de cinismo olhando para o que restou dele e dizendo o que ela relata abaixo:
Quando ela conta a lembrança que teve num momento tido como inadequado, não tem como: imagino sempre meu pai ao lado dela, com "cara de engraçado", cheio de cinismo olhando para o que restou dele e dizendo o que ela relata abaixo:
_ Olha aí, Cida... Que situação. Tô igual as caveiras do clipe do Daft Punk, lembra? Imagina eu dançando agora? Cópia fiel hein?
Pronto. Minha mãe que até então sentia só tristeza, teve que se segurar para não cair numa risada que daria medo aos coveiros que trabalhavam no local, afinal rir ali era coisa do sete-pele.
Relembrou os ensinamentos que adquiriu lendo os livros kardecistas que lhe agradam e falam da morte de uma forma natural, científica, mas fervorosa. Que o corpo material seria apenas o lar temporário de uma energia que transcende tudo por aqui.
Meu pai se fazia presente nessa energia e mostrava que, de fato, morrer não torna ninguém santo! Continuava vivo na memória de minha mãe e mantinha o mesmo humor que tanto o qualificava.
Tem gente que tem um certo talento para transformar cenas tristes em cenas não tão dolorosas assim. Aguinaldinho era (ou é né) uma dessas pessoas e fez questão de, uma maneira ou de outra, ajudar minha mãe a achar leveza naquele momento. E que inspiração mais fantástica ele achou para fazer isso.
A morte aliás, seria carregada de paradoxos e meu pai nos explicava essa tese ao dizer que o único momento da vida em que as mulheres sentiam-se magras, sem nenhuma gordurinha sobrando era quando morriam!
Relembrou os ensinamentos que adquiriu lendo os livros kardecistas que lhe agradam e falam da morte de uma forma natural, científica, mas fervorosa. Que o corpo material seria apenas o lar temporário de uma energia que transcende tudo por aqui.
Meu pai se fazia presente nessa energia e mostrava que, de fato, morrer não torna ninguém santo! Continuava vivo na memória de minha mãe e mantinha o mesmo humor que tanto o qualificava.
Tem gente que tem um certo talento para transformar cenas tristes em cenas não tão dolorosas assim. Aguinaldinho era (ou é né) uma dessas pessoas e fez questão de, uma maneira ou de outra, ajudar minha mãe a achar leveza naquele momento. E que inspiração mais fantástica ele achou para fazer isso.
A morte aliás, seria carregada de paradoxos e meu pai nos explicava essa tese ao dizer que o único momento da vida em que as mulheres sentiam-se magras, sem nenhuma gordurinha sobrando era quando morriam!
Minha mãe saiu do cemitério melhor do que entrou. Chorava, ria e conversava com meu pai: você não muda né, Guizão. Continua palhaço. Uma alma engraçada! (E não penada).
No link, o clipe dos esqueletos do Daft Punk, aonde meu pai deve seguir dançando "ao redor do mundo"...
https://www.youtube.com/watch?v=ymei5EA5tz0
No link, o clipe dos esqueletos do Daft Punk, aonde meu pai deve seguir dançando "ao redor do mundo"...
https://www.youtube.com/watch?v=ymei5EA5tz0
